quarta-feira, 25 de julho de 2012

O HORROR DO PRÉDIO VAZIO


Arthur Ferreira Jr.'.







“A senhora tem certeza de que não quer vender o apartamento? A oferta é muito boa.” O corretor segurava a caneta em uma das mãos, tentando parecer resoluto. “O valor que a senhora ganharia é quase o dobro do que este imóvel realmente vale...”


“Não, não,” expliquei pela segunda vez, pondo um pouco mais de veemência na voz, “eu não estou exagerando quando disse que nasci nesse apartamento. Minha mãe deu a luz antes do tempo, e foi tudo tão rápido que eu nasci aí nesse sofá que o senhor está sentando...” O corretor passou a caneta para a outra mão, um tanto perturbado, talvez pelo comentário, talvez pela perda visível de um bom negócio.


Bom negócio ou não, não estava disposta a sair dali. Nunca fui uma pessoa particularmente ambiciosa – para mim, ter o meu cantinho e meus meios de sobrevivência já bastava. Minhas amigas falavam que eu pensava como se fosse uma hippie, que eu devia namorar com homens mais velhos, ou de situação financeira mais definida... mas eu continuava apenas vivendo minha vida e sem colecionar grandes culpas por isso.


Infelizmente, não ter aceito aquela proposta, naquele momento, trouxe o maior remorso que já senti na vida, e não só isso: pesadelos recorrentes e envelhecimento precoce. E a revelação de um segredo que fez com que tudo o mais perdesse ânimo e significado.






Pode parecer estranho que, mesmo após confessar que não tenho ambições muito fortes, diga que trabalhe com dinheiro. Eu era contadora para um escritório terceirizado das Indústrias Carcosa, que ficava bem próximo do apartamento onde eu morava, no bairro de Vila dos Caraíbas. Pode-se dizer que é um bairro de classe média decadente de Nova Portal, cidade onde morei a vida toda, mas que depois de tudo que aconteceu, planejo deixar em pouco tempo.


O prédio era antigo, mas não tão antigo que estivesse caindo aos pedaços. Eu realmente gostava dali. Meu apartamento, no terceiro andar, era único no sentido em que tinha uma varanda – por alguma razão excêntrica do dono anterior, que era um amigo de meu falecido pai. Naquela varanda eu colocava uma mesinha grande o suficiente para que duas pessoas jantassem, sentadas em pufes bem confortáveis. Quase sempre, os começos de meus relacionamentos envolviam encontros naquela varandinha; e os finais sempre incluíam discussões no quartinho que dava para o poço central do edifício. Naquele quartinho eu também costumava me isolar para fazer poemas – literatura ruim que tenho vergonha de mostrar aos outros, mas escrevê-los é um modo de desabafo. Ali também ficavam meu diário e uns cadernos velhos... numa escrivaninha antiga, do lado de uma mesa pequena, e uma poltrona. O que é esquisito é que, como eu disse, esse lugarzinho quase secreto sempre acabava, com o vai e vem das discussões e brigas, invadido pelo casal – eu e meu namorado, qualquer que fosse ele num dado momento – e ali tudo terminava.


Hoje olho no espelho e enxergo linhas de expressão bem marcadas ao redor de meus olhos, e rugas quase macilentas decoram minha testa. Mas naqueles anos, minha pele mulata era límpida e atraente, meus olhos tinham o brilho da vida e meu rosto, com seu sorriso de covinhas, atraía a atenção imediata dos rapazes. Eu era romântica e me atirava de cabeça quando me apaixonava; há sete anos eu era assim, hoje não tenho energia para conversar, e mais ouço e escrevo, do que falo e declaro minhas intenções. Assim, mesmo depois de vários relacionamentos, eu conseguia me renovar por dentro, e partir para outra. E nenhum deles foi definitivo, embora houvesse a ilusão de que seriam... hoje, não tenho ilusões sequer de que consigo iniciar alguma coisa.


Eu estava num desses intervalos entre namoros, e tinha decidido me dedicar mais ao trabalho do que a outra coisa. Saía menos. Passava mais tempo em casa analisando balancetes, e fumando sozinha na varanda enquanto ouvia jazz e chorinho... escrevendo um ou outro poema nos cadernos do quartinho que dava para o fosso do prédio.


Mais ou menos na mesma época em que me foi feita a oferta de compra do apartamento, comecei a ter crises de inspiração, e vinha o chamado “branco,” quando tentava escrever algo. Quer dizer, o problema não era a inspiração, era a expiração, a expressão: eu sentia coisas, tinha ideias, formulava conceitos, mas não conseguia pôr nada no papel. Assim que eu sentava no local de costume, a poltrona rangia e eu sentia um frio dentro da mente – não conseguia escrever. Algumas vezes cochilei recostada, e acordava sentindo uns calafrios esquisitos que nunca haviam surgido antes – vinham até com um toque de náusea, me fazendo levantar de imediato para ir ao banheiro e escovar os dentes.


Avaliava que devia ser o estresse. O escritório me fazia trazer cada vez mais trabalho para casa, e os cálculos eram cada vez mais complicados, o estouro de uma bolha no mercado imobiliário havia afetado os negócios da Carcosa e os analistas financeiros tentavam contornar a situação. Eu lia matérias sobre o caso e me admirava com o esoterismo, o quase transcendentalismo daquelas especulações, que haviam trazido o setor próximo ao colapso, em Novo Portal e na região que a cidade dominava. Muita gente desempregada, e parece que até mesmo o número de sem-teto havia aumentado.


Meu velho prédio não deixou de ser afetado. Os apartamentos estavam sendo comprados por um preço mais alto que o normal e a maior parte das pessoas, vendo a situação, aproveitava para vender o imóvel antigo. Chegou a um ponto em que só haviam três apartamentos ocupados: o meu; o 301, de um tradutor divorciado chamado Fabrício Montalvão; e o 104, de uma velhinha que morava apenas com seus gatos.


Uma tarde, eu quase tropecei ao voltar para casa, batendo com o pé em sapato de salto alto em alguma coisa que praticamente saíra voando pelo meu corredor. Da esquina vi o rabo de um dos gatos brancos de dona Bibiana; e meio irritada, fui pedir a ela que mantivesse os animais dentro de casa, aquilo poderia provocar um acidente.


A velhinha abriu a porta e, de cara, vi que o apartamento estava cheio de caixas largadas pela sala e por outros cômodos. A palavra “mudança” estava estampada na cena e também no rosto de dona Bibiana, que pediu desculpas pelo incômodo causado, perguntou se eu não queria tomar um cafezinho, e comentou que no dia seguinte o caminhão chegava para pegar as coisas dela. Os gatos deviam estar assustados com a desarrumação de tudo, foi o que ela me disse.


Já em casa, sob a ducha, pensei no que diabos estava acontecendo. Havia feito umas poucas investigações e sabia que cada apartamento havia sido comprado por uma pessoa diferente, entre físicas e jurídicas; não podia ser alguma empresa tentando construir um novo empreendimento no terreno do prédio, até porque a conjuntura do mercado naquele momento não era propícia. Fumei um pouco de erva na varanda – agora eu não tinha satisfações a dar aos vizinhos de janela, e, mais relaxada, fui até o quartinho tentar extravasar minhas inquietações no papel.


Tão logo me recostei na poltrona, não pude deixar de ouvir uma conversa que se infiltrava pelas paredes e pelo fosso do prédio. Era o Fabrício, no lado oposto do fosso – sua voz era nítida, e ele parecia estar falando ao telefone, porque era a única voz ali. Mas, por reconhecível que fosse, a voz não parecia dizer nada inteligível – era uma língua estranha, com alguns sons guturais. A cadência de Fabrício – quase recitando aquelas palavras desconhecidas, num ritmo que, prestando atenção, fantasiei ser uma poesia – me provocou um calafrio muito similar àquele que sofria ao acordar dos cochilos na poltrona, e flagrei-me apavorada por um instante.


A declamação continuou e eu levantei, quase pensando em chegar pelo reduzido basculhante e gritar um pedido de silêncio – mas o calafrio, a estranheza da situação e o fato de que eu já havia ido reclamar algo com minha outra única vizinha, me impediram. Percebi que um barulho como de arrastões por um piso de tacos acompanhava o poema – se é que era poema. Ergui-me na ponta dos pés e espiei, o basculhante da casa dele mostrava só uma escuridão completa; não dava para achar que houvesse qualquer luz acesa naquele apartamento, salvo dentro de algum outro cômodo totalmente fechado.


Aos meus olhos, a bizarria da situação havia aumentado, o pânico ameaçou voltar, mas eu engoli em seco e preferi sair do quartinho, indo direto para a cama, onde me enfiei sob as cobertas. Demorei mais do que esperava para dormir, mas acabei conciliando o sono; e enquanto tentava dormir fiquei a refletir sobre Fabrício – um cara já chegando na casa dos quarenta, antes sua casa andava cheio de amigos, mas estes foram rareando e sumindo, ao ponto dele deixar de cumprimentar os vizinhos e passar dias sem sair de casa, trabalhando, eu imaginava. Sabia que ele era tradutor de inglês, italiano, e... grego, sabe-se lá por que razão; então aquilo que eu ouvira devia ser grego. Talvez ele estivesse lendo alguma coisa em voz alta, pensei... mas por que então estava tudo tão escuro...?


Pensando nas trevas do apartamento de Fabrício, adormeci.






Três dias depois, ignorei a ducha costumeira e fui direto para a poltrona, sentar e chorar um pouco. Não conseguia me deitar, por alguma razão as costas me doíam, e sentia uma tontura, que melhorava se eu estivesse sentada. Chorava porque estava, na prática, desempregada. Eu vinha do subúrbio de Grotão, onde fora entregar pessoalmente uns documentos a um funcionário graduado da Carcosa – as Indústrias mantinham uma refinaria por aquelas bandas, um bairro ainda mais decadente que o meu, embora ainda cheio de casas antigas – e depois disso, no trânsito, pelo celular, um colega me alertou para uma série de mudanças que estavam ocorrendo no escritório, por baixo dos panos; e que o escritório seria desmontado em muito, mas muito breve.


Eu havia me acostumado àquela rotina e não sabia – com a crise da época – quando conseguiria de novo um emprego; era competente, mas não um prodígio... não o suficiente para me destacar onde a seleção natural do mundo financeiro estalava seu chicote. E eu sentia vontade de chorar de frustração... mas não conseguia.


Sentada na poltrona do quartinho, ouvi o som distinto de um miado, bem ao longe. Parecia vir do fundo do fosso; será que a velha havia deixado algum gato para trás? Pelo basculhante, vi uma leve fosforescência lá embaixo. Quem teria deixado as luzes acesas e um gato preso na casa de força? Mas não lembro de ter visto nenhum felino pelas escadas do prédio vazio... prédio vazio, pensei. Não estava tão vazio. Eu precisava esquecer meu problema por um tempo, e visitar meu vizinho me pareceu, num estalo de ideia, a melhor opção. Ele também deveria estar solitário... e quem sabe apreciasse minha companhia, nem que fosse para jogar conversa fora, mesmo... e o gato lá embaixo, repetindo seu miado sofrido pela terceira vez, era uma desculpa perfeita para quebrar o gelo.


Na verdade, antes não havia gelo – antes da mudança gradual de comportamento de Fabrício, eles costumavam bater papo na portaria do prédio, e havia até um clima de flerte – sempre depois desarmado por um novo namorado meu, ou por um dos amigos que o visitava. O terceiro miado do gato, lúgubre a ponto de me causar aquele horrendo calafrio ao qual começava a me acostumar, me fez decidir de vez. Saí do quartinho, tomei a ducha que deveria ter tomado antes – o mal-estar que eu sentia passou, levada pela água que escorria pelo ralo – uma leve borrifada de perfume cítrico, uma roupinha casual mas elegante e pronto: podia pedir ajuda ao vizinho para salvar o gato do fundo do poço, que ia até o subterrâneo do prédio, onde havia a casa de força. Quem sabe eu conseguiria resgatá-lo de sua solidão e transformá-lo de volta naquele trintão charmoso, que sorria segurando uma caneca de café, quase piscando o olho...?


Quando bati à porta de Fabrício, minhas intenções já haviam passado de afogar minhas mágoas com ele para fazer com que ele afogasse as dele comigo – não obstante ele ter entrado naquela decadência social já há mais de um ano, e mesmo assim eu não tê-lo procurado. Eu era jovem, e jovens encontram as melhores explicações para usar as outras pessoas. Não tendo resposta ao meu toque, bati outra vez. Olhei o visor do celular: já estava ali há quase cinco minutos. Talvez estivesse dormindo – mas era ainda muito cedo, e no banho não poderia estar; eu ouviria o barulho do chuveiro. Encostei o ouvido à porta – minha única amiga nos dias de hoje diz sempre que, quando eu quero alguma coisa, não sossego – e tomei um susto, porque de repente Fabrício começou a falar lá dentro, provavelmente estava mais para dentro do apartamento e não na sala, mas falava alto o suficiente para que, dessa vez, eu entendesse o seu monólogo:

“Sabe o que a gente faz com um pé gangrenado? Amputa. Até a Bíblia fala disso, quando diz pra gente atirar longe o olho esquerdo, a mão esquerda. Esquerdo é só uma palavra em código pra maculado. O canhoto era tido como coisa do diabo. Então, se você não der um fim no seu apartamento, todo o prédio vai estar podre... podre como a escuridão batráquia que invade o mundo! Você tem que se salvar, Bartira! O fogo purifica. Queime o apartamento!... Queime o apartamento!!!”


Dessa vez não achei que ele estivesse recitando poemas gregos, ou ao telefone. Especialmente porque meu nome é Bartira Maldonado!!!


A voz de Fabrício se aproximava da porta, e continuava, aflita: “O mundo está maculado, sabe. Cheio de pequeninas conexões, que os desatentos não notam. Mas, pra mim, é tudo tão claro! Eu consigo enxergar. Lembra daquela tonturinha que você sentiu quando saltou do carro, ontem...? Pareceu apagar por apenas alguns segundos... pois é, antes disso, você passou pela estrada de Grotão pra Novo Portal; havia acontecido um acidente, muitas vítimas, e o condutor do coletivo clandestino disse que bateu com a carreta porque uma “escuridão” havia entrado em sua cabeça. Tudo muito rápido. Exatamente como você, entende? E as rodas direitas do seu carro estão manchadas com o sangue das vítimas... com o sangue do próprio motorista. Você saboreou um pequeno aperitivo daquela escuridão, ela veio rodando com você por quilômetros, viajou com o sangue e o pó da estrada. Quando você se levantou, e as trevas roçaram de leve a sua perna. A escuridão se infiltra, ela entra em todos os cantos, vaza pelos poros do mundo, você não consegue sentir?!?”


Neste ponto, não aguentei mais – minha vontade se dividia entre o pânico de sair correndo para longe daquele louco, ou esmurrar a porta, desesperada, e exigir uma explicação. Mas não fiz nem uma coisa nem outra: dei dois passos para trás e escorreguei pela parede, um suor frio gotejando na testa. Sentada naquele chão gelado, percebi que Fabrício havia finalmente se calado – talvez houvesse percebido que eu estava ali; mas se só havia notado naquele instante, por que estava já falando comigo...? Foi então que uma coceira provocou meu braço, e depois as maçãs do rosto, espalhando-se por vários pontos isolados do meu corpo – era como se eu tivesse, com a maior rapidez, manifestado alguma alergia inesperada. Devia ser o estresse, racionalizei. Como o silêncio lá dentro continuasse, decidi não procurar explicação alguma naquele momento. Mas não tinha forças para levantar, a náusea havia voltado, forte... mas não o suficiente para vomitar. Na verdade, era como se eu estivesse constipada... entupida. Maculada... não era mácula a expressão usada por Fabrício?


Fiquei cerca de vinte minutos ali, esgotada pelo choque, até conseguir forças para levantar e voltar ao meu próprio apartamento. Nesse ínterim, nenhum ruído no 301 de Fabrício; eu preferi tentar descobrir que conversa toda era aquela no dia seguinte, e, segurando-me nas paredes, andei pé ante pé no corredor, para evitar ser ouvida por ele. Ao entrar na minha casa, a vontade era bater a porta num estrondo; mas não fiz isso e, na verdade, esse desejo se esgotou quando lembrei das palavras daquele perturbado – meu apartamento estava podre, e eu precisava queimá-lo...


Pensei que meus sonhos naquela noite fossem aprofundar-se em pesadelos; mas não sonhei coisa alguma, no outro dia acordei cansada, esgotada.






Tentei esquecer o ocorrido, e na semana seguinte lidei com a já sabida e inevitável demissão. O desmantelamento do escritório foi estranhamente eficiente – porém estava mais para um esquartejamento, pois como milagre, funcionários seletos foram relocados para a própria Carcosa, embora eu não tenha sido incluída: fui um daqueles pedaços de carne que você descarta. O dinheiro que recebi de indenização dava pra viver bem durante algum tempo – talvez um ano; ou dois, vivendo mal.


A atitude correta teria sido correr atrás do prejuízo de imediato, e procurar um emprego novo, distribuir currículos e checar meus contatos; só que eu não fiz isso, algo exausto dentro de mim pedia um certo descanso, então prometi a mim mesma pelo menos um mês sem preocupações, sem trabalho, e depois disso, mãos à obra – esse tempinho não poderia fazer muita diferença. Outra decisão da qual me arrependo.


De qualquer forma, havia aquela questão que incomodava... um tanto amargurada, sentia vontade de procurar o Fabrício, mas não ia fazê-lo sem antes estar preparada... passei meu novo tempo livre pesquisando sobre o vizinho; foi quando descobri umas tantas coisas curiosas, e outras francamente estranhas. Fabrício Montalvão era bisneto de Cipriano Montalvão Bastos, o arquiteto que havia projetado o prédio onde nós morávamos. Inspirado pelo antepassado, imagino, tentou o vestibular para arquitetura, mas bombou duas vezes, e passou por fim em Letras. Chegou a conseguir o doutorado, vivendo de bolsa, como pesquisador, e nesse tempo aprendeu outras línguas além daquelas que eu pensava que ele conhecia – latim, galego, árabe, até mesmo basco e uma língua africana que nunca antes ouvira falar, o hauçá. Seu mestrado na verdade fora em História... a tese de doutorado lidava com semiótica e religião comparada... e embora não fosse especializado em literatura, publicou um livro de poemas com um nome que naquele momento me pareceu doido, Lemniscata Serpentina, pela editora da Universidade Federal de Novo Portão. Os amigos que frequentavam sua casa eram pesquisadores da época de bolsista, e alguns artistas que faziam serão para declamar poesias, tocar violão... lembrei que há cerca de dois anos, ouvi uma música desconhecida vinda do apartamento dele, e no dia seguinte perguntei o que era, ao que ele me respondeu ter sido o alaúde de uma amiga. Além disso, Fabrício não tinha parentes próximos vivos, a não ser que considerasse como tal a ex-mulher, uma moça que vivia numa chácara em Grotão. O casamento dos dois durou apenas três anos e meio, e ao completar trinta anos, Fabrício já estava divorciado e nunca mais se casou, nem teve outros relacionamentos duradouros. Ninguém sabia exatamente porque ele começou a evitar as visitas dos amigos – embora pelo menos meus contatos afirmassem que ele sempre foi do tipo anfitrião que preferia receber a visitar. Alguns dos mais chegados tentaram insistir em continuar o convívio, mas em pelo menos uma ocasião Fabrício empurrou uma amiga pela porta de casa.


Esse episódio de violência mínima quase me desencorajou de retomar o contato com ele; e me veio a vontade forte de procurar aquele corretor, vender de vez o apartamento, sumir dali para sempre e assegurar a sobrevivência por mais tempo. Ainda outro motivo de posterior arrependimento. Superando, embora com certa hesitação, as minhas reservas, decidi tentar surpreendê-lo quando estivesse saindo ou entrando, já que até então todas as vezes em que o vi foram pela varanda; ele andava apressado pela rua lá embaixo, saindo do prédio, sem que eu ouvisse antes passos pela escada.


Enquanto o mês passava também tentei me ocupar de encontrar o gato perdido no prédio; só que não achei nem traço de felino. Cheguei a descer até a casa de força, já me preparando para sentir cheiro de urina, mas não – em vez disso apenas encontrei alguns ratos mortos. Aliás, alguns não; muitos ratos mortos. Não sabia que veneno eles haviam tomado, ou se haviam levado choque elétrico, mas vários estavam de cadáver largado bem longe dos aparelhos que operavam a infraestrutura elétrica do prédio. Vencendo a repugnância – até porque era mais fácil manusear o corpinho pelo simples fato de que ele não estava fedendo como eu achava que deveria – levei um dos corpos a uma amiga bióloga – e ela não soube me dizer o que matou o rato, era como se o bicho simplesmente tivesse parado de viver. Minha amiga quis levar colegas dela até a casa de força, verificar o caso, mas eu pensei que, se fosse um mistério insolúvel, poderia muito bem atrair atenção de um dos jornalecos da cidade, e eu ia perder o sossego que tanto procurava.


Sim, procurava, apenas, porque não o encontrei. Durante aquele mês senti-me tão estressada quanto no trabalho, as tentativas com a poesia não rendiam coisa nenhuma, eu me sentia mal a cada três dias (fui ao clínico geral e nada foi detectado), passava às vezes a noite inteira acordada na varanda, fumando e ouvindo discos de vinil na velha vitrola que fora de minha mãe. E pelo menos duas vezes cochilei, jogada no chão frio, pés encostados contra o alumínio das barras de proteção... e nessas duas vezes aconteceu a mesma coisa esquisita: acordei, e a radiola estava tocando. Olhei o horário e notei que... havia dormido ali por uma hora e vinte (na segunda vez, por quase duas horas). Só que, como é que o disco ainda estava tocando, se ele necessariamente tem de parar com menos de trinta minutos de faixas...?


Matutei e matutei no assunto, e não soube como explicar. O relógio do celular estava funcionando direito, cheguei a mandar verificar por um técnico. E naquela segunda vez, quando despertei ao som dos Titãs tocando Flores... me retornou a memória daquele incidente tão inexplicável quanto, de Fabrício falando com uma Bartira imaginária. E a lembrança foi quase uma punhalada no meu cérebro, porque pude lembrar de cada palavra com precisão – e recordei de um detalhe que havia deixado passar, provavelmente devido ao choque daquela situação: ele falou da tontura, e de um acidente na antiga estrada que levava a Grotão, e era tudo verdade – mas ele havia falado como se houvesse ocorrido no dia anterior...! Suas palavras exatas: “Lembra daquela tonturinha que você sentiu quando saltou do carro, ontem?” O disco passou para a faixa O Pulso, e eu decidi – falaria com Fabrício naquela mesma noite.





Eram quase três da madrugada, mas eu estava tomada por um desses ímpetos que devem ser satisfeitos – era uma indignação misturada a uma curiosidade mórbida, uma revolta mesclada a uma genuína preocupação com Fabrício... e comigo mesma. Vesti uma calça voando, abri a porta, larguei-a aberta (quem é que entraria na minha casa, àquela hora, num prédio vazio...?) e marchei até a soleira de Fabrício Montalvão. Naqueles rápidos movimentos até me passou na cabeça, que eu estivesse apaixonada pelo homem – e se isso não fosse verdade, pelo menos admiti que estava obcecada por ele.


Bati. Ninguém atendeu. Silêncio mortal lá dentro... agoniada, testei a maçaneta mesmo sabendo que seria inútil. Só que não foi: a porta se abriu e diante de mim estava a sala do apartamento de Fabrício, em completa desordem, iluminada pela luz quase fosforescente da lua.


Parecia até de propósito, mas deixei essa ideia de lado – racionalizei que a perturbação do vizinho o havia deixado esquecido.


Gritei, “Fabrício!”, sem ser atendida. “Estou entrando,” fui anunciando. “Cadê você...?” fui procurando pela casa, e o homem parecia não estar lá. Entrava o vento frio pela porta aberta e balançava duas cabaças que estavam penduradas numa parede. Além da sujeira e confusão de coisas, havia até mesmo um daqueles ratos horríveis, deitado de cabeça para baixo, encostado num canto perto da porta do banheiro. “Gente...” murmurei chocada. Chequei todos os cômodos – o equivalente ao meu quartinho, bem maior por ter uma divisão diferente de aposentos, estava atulhado de livros, alguns deles bem velhos e outros de fato veneráveis, com capas de couro; aquela parte da casa cheirava forte a água sanitária. Ou a algum outro produto químico que lembrava água sanitária, pois nunca tive alergia a isso, mas já começava a me faltar um pouco o ar e a coceira a se instalar nos antebraços e no pescoço. Só faltava o banheiro. E, olha só, pensei... a única porta trancada. Bati.


Continuava sem resposta. Coloquei o ouvido sobre a porta e... lá dentro, ouvi uma respiração suave, mas forçada, arquejante. Não dava para pensar em mais nada senão arrombar a porta, o homem estava passando mal! – e como eu não tinha força para derrubá-la, voltei até meu apartamento e busquei a caixa de ferramentas que havia sido deixado por um ex-namorado. Por um momento tive a impressão de que alguém havia entrado na casa – eu havia mesmo deixado aquele caderno em cima da mesa...? Mas deixei isso pra lá e corri até o 301.


Labutei, tentei, tentei de novo... suava, porque tinha de me lembrar como fazer aquilo, coisa que só havia antes visto sendo feita; mas consegui; a lingueta soltou com um estalo. Arrombada a porta, abri-la exibiu uma cena que gelou minha alma até o fundo, fazendo-me tremer e segurar a maçaneta com força, para evitar uma literal convulsão. Se não caí no chão, foi porque já estava de joelhos para melhor derrotar a tranca...


Deitado no chão do banheiro de azulejos negros e ensebados, estava o corpo de Fabrício -- pálido, de uma tez praticamente cinzenta, de ventre para o chão e sem camisa, o pescoço torcido numa posição exagerada, vestido apenas com uma calça jeans surrada. A certeza de que ele estava morto veio em poucos segundos. Assim que a porta foi aberta, uma lufada de ar invadiu o banheiro e... a pele das costas do cadáver começou a afundar, formando uma depressão pulverulenta, erodindo de modo a delinear um buraco perfeitamente quadrado...e então mais uma vez, outra cavidade dentro da cavidade... como se um o espaço ausente de uma pirâmide invertida estivesse sendo esculpido com precisão nas costas mortas e cinzentas de Fabrício... um fosso dentro do outro... Não só o desenho era perfeitamente simétrico, como continuava a formar outra cavidade interna, e outra, e outra, e como mostrava ranhuras, detalhes, aspectos típicas de uma construção, um anfiteatro quadrado feito de carne e pó. Estruturas ficavam evidentes, sulcos, canais... Então a degradação atingiu o chão do banheiro, terminando de imprimir a planta tridimensional de uma bizarra e macabra localidade em miniatura... impressão que durará para sempre em minha mente, apesar de manter-se estável por apenas poucos segundos, antes do resto da carne morta desabar sobre a escultura negativa, levantando uma sufocante nuvem de cinzas, sangue coagulado, ínfimas lascas de ossos, e podridão.


Tossi desesperada, tentando respirar; as lágrimas corriam céleres pelo rosto e se misturavam à repugnância daqueles fragmentos carcomidos. Passei as mãos no rosto, apavorada, tentando enxergar – e percebi, olhos arregalados e vermelhos pela irritação, que não estava mais no apartamento de Fabrício...


Uma fossa acinzentada de calcário e metal fosco, cercada por paredões perfeitamente quadrados delimitando outras cavidades, até atingir os céus tomados de nuvens pesadas e turbilhonantes, girando ao redor de um nexo – e eu estava no fundo da cavidade, em seu centro exato, exposta ao ar frio.


Tentei recuperar o fôlego, mas não só o espanto daquela paisagem me consumia, como aquela atmosfera gélida – fria como o toque do aço – pesava densa sobre mim, cortando-me o pouco ar que entrava e saía dos pulmões. Era um novo e estranho mundo ao meu redor, de padrões simetricamente alienígenas em seus entalhes, arabescos e mandalas de pedra e metal, e as nuvens lentamente rodopiantes assomavam como uma massa grotesca e coagulada de ferrugem, sabe-se lá como, flutuando no céu.


Foi então que das mais altas bordas dos paredões simétricos que me cercavam, surgiu o primeiro vulto, destacado contra o céu primal e ominoso. Era uma figura humanoide, de braços excessivamente longos, desproporcionais para com relação ao torso bastante magro, vestindo robes de cor azul cobalto. Por algum estranho truque de distância, conseguia enxergar os detalhes mesmo àquela distância quase abissal. Numa percepção longe de ser onírica – nada daquilo parecia ser um sonho, tudo se impunha horrivelmente real – vi que outras sombras de robe aproximavam-se, e várias daquelas entidades, de postura hierática como a de um Anúbis, observaram-me das bordas mais afastadas à minha frente. Todos tinham as mesmas proporções aberrantes, incluindo uma esquisita cabeça como um... bulbo negro, negro como petróleo, encimando um pescoço curvo como o de certas aves aquáticas. Nesses bulbos não havia feição alguma, nem olhos, nem boca, nem nariz, nem nada...


Mesmo estarrecida, consegui trazer mais próxima da normalidade a minha respiração. Mas foi aí que o primeiro vulto gesticulou um báculo de pontas contorcidas e simétricas, e das nuvens ferruginosas no céu desceu um raio de luz, um facho de cor que não consigo determinar, algo entre amarelo, esbranquiçado, e cinza. O raio descia numa lentidão antinatural, e percebi que ele atingiria o centro profundo daquela enorme estrutura onde justamente eu estava, e prudentemente dei dois ou três passos para trás, mas temerosa demais para sair correndo.


A luz, ao chegar mais próxima, mostrava-se não só vagarosa como anormal, um facho repleto de imundícies viscosas, que dançavam repelentes e misteriosas, escorrendo de modo teatral pelo continuum do raio de luz. Eram coisas oleosas e perversas, e contorciam-se umas em torno das outras, serpenteando num padrão desordenado que contrastava de maneira abrupta com a simetria impiedosa daquela construção ciclópica. Aquele enxame de criaturas não tinha cor, era transparente, percebido como um paradoxo, uma ausência que se mexia e tornava-se negra em suas aglomerações mais espessas. E antes de tocar de fato a superfície do chão em que eu estava, uma horrenda sensação sinestésica tomou meu cérebro, e percebi que as imundices que preenchiam e moviam-se pela luz doentia eram também sons, ruídos e ecos, abafados e contidos pela luz.


"Eu sou minha própria prisão," sussurrou uma voz uivante e dolorida dentro de minha cabeça, que ao mesmo tempo bramia e ecoava fisicamente por toda a estrutura de metal e calcário esculpido. "Eu sou o poço, a escuridão batráquia, a mácula que se espalha e ao mesmo tempo se esgota dentro de si mesma. Eu sou o Tenebroso Han, maestro da morte, senhor da profecia interminável e da lemniscata serpentina, Thaagshaa dos nexos desencontrados. Aspira e engole estas minhas palavras, que exalo e libero pelo vazio luminal, e transmuta-as em escrita. Volta para teu lar, e prepara-te para meu retorno."


Congelada pela atenção que aquela... coisa... me dedicava, abri a boca para soltar um grito de pavor, mas fui impedida por uma mão de quatro dedos – de cor negra como o petróleo – que  segurou meus lábios, vinda por trás de mim. Uma figura como aquelas que observavam de cima afastou-me da luz – seu toque era ainda mais gelado que o ar – e caminhou para... dentro do facho, usando-o como uma espécie de... ponte, que cruzava mais rápido do parecia possível, caminhando com extrema economia de movimentos. Parecia andar em linha reta para a minha frente, embora na verdade estivesse subindo... eu não conseguia despregar os lábios que a entidade havia fechado, e percebi que, na parte de trás daquela cabeça cônica e bulbosa, estava um rosto. Humano. De cor pálida, quase acinzentada, olhos fechados... o rosto de Fabrício.


A visão foi demais para mim e desmaiei sobre o chão de pedra daquela cidadela interna. Acordei, banhada de suor, no piso do banheiro de Fabrício... sozinha. O cadáver, ou o que quer que fosse aquilo, havia desaparecido, ou nunca estado ali. Tentei me convencer de que havia batido a cabeça contra a porta, ou desmaiado de mal-estar, e tido um rápido pesadelo... e teria conseguido, se não fosse um pequeno detalhe.


Ao meu lado, estava um carvão de desenho, e um papel de caderno amassado e amarelado pelo tempo, que não vira antes – desdobrei-o e li, em minha própria caligrafia de garranchos, as palavras escritas em grossos traços negros, "Eu sou minha própria prisão..."






A folha de caderno era do mesmo tipo das páginas daquele caderno que estava sobre minha mesa, quando saí do meu próprio apartamento? Muito mais amarelada e gasta, porém parecia a mesma. Devolvi o papel ao seu estado amarrotado e enfiei-o no bolso, como se tentasse ocultar a evidência de algum crime... e de fato eu havia cometido um crime, invadido o apartamento de um vizinho, arrombado a porta de seu banheiro... e se ele voltasse da rua e me pegasse ali, um homem perturbado, talvez perigoso...?


Respirei fundo e preparei-me para sair dali, quando meus olhos pararam na porta aberta daquele quarto cheio de livros que dava para o poço do prédio. Pelo basculante veio um miado – mas daquela vez a voz do gato era um tanto diferente, o miado parecia mais uma monstruosa e abafada respiração asmática. “São meus nervos,” reagi pensando. Eu mesma também arquejei baixinho, aquele odor de água sanitária incomodava como se eu tivesse certeza que estava sendo envenenada por ele... “Envenenada, não – maculada,” o pensamento reagiu ainda mais instantaneamente. Eu precisava de um copo d'água.


Saí de perto daquele quarto opressivo e fui até a geladeira – um modelo antigo ressonava na cozinha de Fabrício, como se dormisse esperando a volta do dono. Abri e antes que pudesse encher um copo d'água, notei que alguma coisa volumosa estava socada no congelador. Abri com uma certa dificuldade e... era um pacote de trapos, envolvendo grosseiramente uma pilha de livros e cadernos. “Os livros de Fabrício estão me perseguindo,” a paranoia reagiu mais uma vez. Tentei suprimir essa sensação tomando rápido aquele copo d'água que havia vindo buscar – e quase cuspi fora, porque estava um tanto quanto impregnada de um gosto acre bem afim ao cheiro de água sanitária do qual havia vindo me livrar. Voltou então aquele impulso de resolução, de querer pôr as coisas em pratos limpos, que havia me levado até ao apartamento alheio. Tirei os livros do congelador.


Mas não iria ficar ali naquele apartamento – se os livros fossem alguma pista do que estava acontecendo, já que no mínimo iriam revelar algo sobre a loucura de Fabrício, teria tempo e lugar para analisá-los na minha própria casa. Então, vacilando entre a pressa e o cuidado, fechei a porta arrombada do banheiro e voltei para meu apartamento.


Chegando em casa, pus o pacote sobre a mesa. Meu próprio caderno continuava ali – não chegou a tranquilizar os caprichos de minha paranoia, mas já era alguma coisa. Livrei-me dos trapos úmidos – era uma camisa velha – e contei três livros diferentes, sendo dois de capas de couro como alguns que havia visto na biblioteca de Fabrício, e dois cadernos de tamanhos e volumes diferentes. Os livros mais velhos estavam em línguas que eu desconhecia – um deles era amarronzado e as páginas tinham a mesma cor do couro, suas letras árabes escritas numa tinta esquisita, de tom esbranquiçado e desagradável. Em comparação apenas, o segundo era mais normal, e eu conseguia reconhecer um português bastante arcaico; logo nas primeiras páginas havia uma dedicatória anônima em letras filiformes, “Para Cipriano...”. O terceiro era uma brochura com o título Lemniscata Serpentina, EDUFNP, 1983. Nem precisei checar o nome do autor para lembrar que eram as poesias de Fabrício... porém a capa apenas trazia o sobrenome Montalvão. Quanto aos cadernos, estavam repletos de anotações, cuja caligrafia decaía com o tempo. A diferença entre os dois era que um era na verdade um livro-razão de contabilidade, contendo o mesmo tipo de anotação, e dentro deste estavam guardadas algumas páginas de papel quadriculado. Esses papéis tinham a borda rasgada sem jeito, e exibiam desenhos bem curiosos, um tanto tortos do próprio esforço que seu autor obviamente teve em reproduzir alguma escala...


Pelo que li pelo resto da madrugada até o amanhecer, o diário de Fabrício – que era o primeiro caderno – contava que ele havia descoberto que seu bisavô pertencia a uma fraternidade secreta que se separara da Ordem de Cristo (que eram os templários portugueses, soube depois) no finzinho do século XVIII; do avô Deodoro herdara aquele tomo em português, cheio de poemas trovadoristas, que começavam de maneira bem bucólica mas adquiriam um tom bastante sombrio em seu encerramento. Os versos brancos da Lemniscata Serpentina haviam sido inspirados nessa poesia ancestral... e folheando o livro escrito por Fabrício, fui tocada pelo tom melancólico de várias de suas composições, teoricamente escritas numa época em que ele não estava depressivo. Uma deles, “Poema Sem Nome Nem Memória,” falava da perda da inspiração e do esquecimento. Cheguei a sentir de novo aquela náusea misturada com saudade, que havia sofrido ao tentar escrever nos últimos tempos.


De qualquer forma, anos depois de escrever e mesmo publicar com baixa tiragem esse livro, Fabrício desconfiou durante suas pesquisas acadêmicas que o livro do bisavô estivesse cifrado, contendo alguma mensagem secreta. Intervalos no tempo e páginas rasgadas do diário não revelavam quem ou o quê exatamente havia fornecido a chave para o enigma, mas essa chave estaria no livro em árabe – na verdade escrito em hauçá, em caracteres arábicos; apesar do título em árabe, “Asrar Douda Haka Mafhmitikch”. Esse tomo bem mais antigo supostamente havia sido escrito por um escravo muçulmano, um alufá (nome religioso que se referia tanto a marabus muçulmanos como a babalaôs animistas), envolvido numa revolta que custou sua vida. O malê transcrevera e comentara em sua língua capítulos selecionados do horripilante grimório De Vermis Mysteriis, ou na verdade alegava que aqueles trechos foram originalmente escritos em árabe e postos no latim pelo “mago” belga Ludovico Prinn. A maior parte das cópias desse “Mistérios do Verme” havia sido queimada pelas inquisições, logo aquela versão hauçá era uma raridade ainda maior, e fiquei imaginando onde diabos Fabrício havia desencavado aquele livro. As anotações continuavam falando de um culto africano mais abominado pelos islâmicos do que o Cristianismo que desejavam destronar; essa seita animista parecia a Fabrício ter elementos similares ao culto aos egunguns e ao Bòòríí – o segundo termo jamais havia ouvido antes – e suas cerimônias eram marcadas por danças mascaradas ao som de alaúdes sagrados e horríveis instrumentos de sopro sem nome definido. Os devotos dos cultos africanos mais... normais... em geral voltavam-se contra a tal seita assim que ela fosse percebida, mas isso não era algo fácil. Essa religião às vezes se infiltrava em outras, tanto para sobreviver quanto para corromper – pois seus adeptos se diziam inspirados pela “sabedoria dos espíritos estrelados” que eram anteriores aos orixás e outros heróis que haviam formado o mundo; anteriores ao próprio Alá; e seus ensinamentos eram grotescos e insidiosos, inclusive na prática de sacrifícios humanos. Os islamitas particularmente desprezavam e perseguiam o culto pela blasfêmia de afirmarem que a Pedra da Caaba continha aprisionado um espírito estrelado antiquíssimo, cuja libertação a seita vaticinava em detalhes, junto com o retorno do exílio de outras quantas entidades nefastas. Até lá, os espíritos presos na Terra – e ao mesmo tempo além da Terra, e na própria terra, no terreno, no ar que respiramos – emanavam e ondulavam; “serenos e primais, invisíveis e imundos, envergando as florestas e esmagando as cidades, maculando e escorrendo sua escuridão” sobre nós, humanos, sem que sequer nos déssemos disso. Uma das formas de ser poupado disso era praticar certos ritos de aplacamento e seus necessários sacrifícios.


Aquelas insanidades descritas me incomodaram – pareciam ficção mal escrita – mas não chegaram a me abalar tanto quando atingiram o âmbito de minha própria existência. Com as “Chaves da Profecia” encontradas no livro em hauçá, o tomo em português arcaico – de nome “Calendairo d'O Ladram de Sinas,” ou “Calendário do Ladrão de Sinas” – assumia toda outra conotação, pois revelava instruções para tornar uma estrutura arquitetônica “um forte para os Antigos Espíritos Estrelados.” A empreitada dependia de coisas obscuras como localização geomântica, alinhamentos astronômicos, “operações xenogoéticas” e não me lembro mais o quê, mas terminava com sacrifícios para consagração final. E naquele ponto da leitura, minha respiração congelou.


As fundações do prédio estavam sob os ossos de vítimas desses sacrifícios. Serviam de “pilares espirituais para os selos da lemniscata serpentina,” lembro-me perfeitamente desse trecho horroroso. As anotações do diário continuavam revelando que a fazenda que originalmente era o bairro de Vale das Caraíbas continha naturalmente uma senzala e que ele tinha quase certeza de que o local exato dessa senzala era o terreno onde o meu prédio fora construído. Compreendia então o que havia despedaçado a vida social e a sanidade de Fabrício Montalvão – e continuando a ler aquilo eu me arriscava a ir pelo mesmo caminho. Fechei tudo sem mesmo checar o livro-razão, ocultei os livros e cadernos de volta nos farrapos, numa desorientação insana guardei o pacote na minha própria geladeira... até hoje não sei porque... coloquei os objetos mais essenciais numa sacola e numa mochila e desci as escadas para me esconder num hotel.






Passei dois dias hospedada no Hotel DeCastro, com febre alta. Tentava dormir mas não conseguia – era o medo de cair nas fossas de pesadelo no apartamento de Fabrício, insônia nervosa. Eu não poderia ficar a vida inteira lá... mas uma inércia me impedia de fazer alguma coisa. O que me levou a cancelar a estadia e voltar a minha casa foi simples e sutil – numa placa enferrujada e quase escondida do saguão do velho hotel de três estrelas, a frase “Projeto Original de Cipriano Montalvão Bastos.”


Sem conseguir pensar exatamente para onde ir – minha mãe morava então em outra cidade – voltei ao meu prédio. Era dia ainda, felizmente. Tentei me acalmar, afinal de contas eu não tinha prova alguma de que haviam ocorrido assassinatos rituais no terreno do prédio. O nome lemniscata serpentina, em si, já havia sido ouvido por mim durante a pesquisa sobre Fabrício – podendo facilmente ter aparecido naquele pesadelo por pura sugestão gerada pelo meu primeiro contato com as fantasias de meu vizinho. O caso da placa no hotel era só uma coincidência. Revigorada por esse pensamento, subi as escadas decidida – o mais firme quanto permitido por minhas pernas cansadas.


Mesmo assim, entrando em casa e contemplando meu próprio apartamento, percebi a verdade inegável – eu não poderia mais morar ali. Sempre me lembraria daqueles dias, daquelas alucinações, e cabia a mim ceder ao corretor e vender o apartamento; se Fabrício realmente tivesse desaparecido, o prédio estaria vazio para sempre, imaginei, sem crer na fantasia, claro – alguém daria uso àquele prédio, e eu não queria nem saber quem. Meu vizinho podia ser apenas um maluco bonitão que viveria em minhas lembranças, e não um... bruxo que convocava espíritos de além do tempo e das estrelas.


Liguei para o corretor e ele marcou um encontro já para assinatura do contrato de venda, no dia seguinte, em seu escritório. O sujeito parecia aliviado, e eu não soube perceber a razão disso. Desliguei, e fui olhar o congelador... lá estavam as livros absurdos de Fabrício Montalvão. Bom, no mínimo eu tinha de tirá-los daquele lugar igualmente absurdo; cogitei se a loucura de meu vizinho era mesmo contagiosa. Seria melhor devolver aquilo, antes de ir embora de vez.


O pacote em cima da mesa da cozinha ficou me tentando de longe, enquanto eu fazia outra ligação, desta vez para uma empresa de mudanças. Uma vontade... absurda... de ler os tomos, e de checar o livro-razão que despontava daqueles farrapos de camisa. Bom, não custava dar uma olhadinha... extraí o caderninho de encadernação dura, estava úmido até demais, como se houvesse ele mesmo suado aquela água. Segurei hesitante e fui até o telefone da cozinha, com o caderno na mão, para fazer outra ligação para o corretor – seria melhor eu acertar a compra de um novo apartamento, usando o generoso dinheiro da venda, com antecedência – limpei o bocal com um pouco de álcool (parecia estar sujo como se houvessem passado dias sem uso), disquei e enquanto esperava que atendessem, folheei o livrinho.


Logo ficaram visíveis os papéis quadriculados, soltos – um emaranhado de coordenadas, notações, alguma coisa referenciando múltiplas dimensões, tubulação manifold, posicionamentos  do prédio com relação a rua e a outros edifícios e marcos naturais, o “poder protetor do àse,” rachaduras, vazamentos, rabiscos nas margens, e entre eles termos como “supercordas” e “entrelaçamento quântico,” que não esperava encontrar nas anotações de um linguista nem de um engenheiro, percebi outro nome que também não deveria estar ali: o meu nome, Bartira.


Engasguei e foi nesse momento em que atenderam. Pensei em alegar engano e desligar, sentar e absorver o baque, mas não consegui. Pois do outro lado da linha veio a voz... “Bartira,” a voz sibilante, envolta numa cacofonia como a de vários modems ganindo ao mesmo tempo; “escreva minhas palavras... (estalos)... seja o canal de minha profecia, e eu – EU – EU...” o eco trovejava nos meus ouvidos e parecia encher toda a casa, “devolverei sua inspiração. Seja (mais estalos) estrela serpentina, e seus poemas de sibila ganharão o mundo, como sempre (estalo mais forte) em segredo.”


Ainda era dia, e talvez a luz que vinha das janelas tivesse me dado coragem – gritei desesperada, “Não!!! Não quero trato com ninguém!!!” A voz do outro lado grunhiu, embora sem raiva, como se já esperasse aquilo, e só tivesse feito a proposta por desencargo de consciência. “Talvzzz você sejjjja a Bartira errada (estalos)...”, e o tom foi abaixando até ficar quase inaudível. Enquanto isso acontecia, eu havia jogado longe o livro-razão, e no canto onde ele caíra... os raios do sol começaram a… dançar... contorcer... e abandonar aquele pedaço da sala.


A escuridão – a ausência – resultante acumulou-se no canto, dando a impressão de um novelo de fios de trevas... e era como se algo estivesse sob a cobertura daquela massa totalmente escura, amortalhado e tentando sair, abrir uma brecha. Em poucos segundos – ou foram minutos? Minha percepção de tempo não estava muito precisa – alguma coisa rompeu a camada de escuridão, deslocando o ar e o próprio espaço ao seu redor, torcendo a arquitetura do quarto, e revelou-se como uma criatura a um só tempo batráquia e simiesca, curvada, feita de uma substância macabra e repulsiva, branca e empelotada, um horror sem rosto, onde viam-se apenas dois olhos muito negros, rasgados em fendas verticais, um em cima do outro, um onde seria a testa, o outro onde deveriam estar os lábios. Nenhum outro traço facial era discernível – nem o nariz, nem a boca, nem ouvidos. Apavorada, tentei correr, mas o monstro estendeu uma mão de seis dedos em minha direção, e toda pretensão de fuga morreu, minhas pernas tremeram e eu caí sobre os joelhos.


Estava pronta para aceitar a morte, era uma punição pela recusa, e eu não aceitaria – nem que tivesse que passar o resto da vida sem inspiração, sem mente, ou morrer, eu não seria porta-voz para aquela... coisa... o Tenebroso Han, maestro da morte, senhor da profecia interminável e da lemniscata serpentina, Thaagshaa dos nexos desencontrados, as palavras me vinham em recitação e eu tentava suprimi-las, até que a criatura aproximou-se e segurou meu rosto.


Pensei que iria me abrir a boca e obrigar a recitar o resto de uma litania que condenaria o mundo – mas não. A cabeça da coisa se aproximou, e eu pude ver naqueles olhos arregalados e sem pálpebras – e na fenda do olho inferior, pude enxergar... era uma figurinha humana nua, flutuando num líquido negro, e a figurinha era Fabrício, e Fabrício fez um sinal de silêncio com o dedo e a boca. As mãos da coisa então roçaram doze dedos em minha boca, num gesto abrupto como se estivessem sendo obrigadas a esse gesto, e senti meus lábios se colarem, exatamente como havia acontecido na alucinação das fossas. Preso no olho inferior da criatura, Fabrício falava palavras inaudíveis... cheguei a entender apenas os movimentos para meu próprio nome, Bartira, “fogo,” e “muito tempo.”


Nesse ponto consegui ganhar forças – e acho que nunca mais repetirei um gesto de ousadia como aquele, ainda mais no meu estado atual. Empurrei o monstro, que parecia estar com as mãos paralisadas, trêmulas, e derramei todo o vidro de álcool ao meu redor e sobre a criatura. No meu lado estava o fogão e suas caixas de fósforo. Pulando por sobre a mesa com uma delas, corri até a porta da cozinha, acendi e joguei.


Pelos gestos, a criatura teria urrado, se tivesse boca. Mas não esperei que ela me pegasse; eu precisava pelo menos tentar fugir, embora não tivesse muitas esperanças disso. Desesperada e afobada atravessei a soleira da porta do meu apartamento, descalça e desmazelada, e sem a ilusão de que uma porta pudesse deter aquele monstro, saí correndo pelo corredor do prédio vazio, já esperando ouvir os passos por trás de mim.


Não veio ninguém, mas eu não ia esperar ali de jeito nenhum. Desci as escadas numa pressa tamanha que só quando cheguei lá embaixo caiu a ficha de que eu estava descalça, de roupão e... assistindo uma fumaça sair da varanda do meu apartamento. Botei as mãos na cabeça, os lábios contraídos numa mistura de alívio e amargura, enquanto pensava que deveria voltar e salvar minha casa. Cheia de lembranças. Ou chamar os bombeiros, pelo menos.


Não consegui fazer nem uma coisa, nem outra – fui me afastando por uma viela perpendicular à rua do prédio vazio, observando a cena de longe conforme subia aquela ruazinha inclinada. Em dado momento simplesmente sentei na calçada, sem lágrimas, nem nada por dentro. A sirene dos bombeiros foi ouvida surpreendentemente rápido – mas eu não estava ligando, naquele momento, ou melhor, não conseguia ligar para nada: o futuro não importava. Eu podia muito bem ter me jogado da varanda, em vez de estar ali.






Hoje trabalho como cuidadora residente em uma casa de abrigo para doentes mentais, em Mirantes do Grotão. Longe do centro de Novo Portal e lidando com pessoas transtornadas, consigo evitar e esquecer o meu próprio trauma. Minha melhor amiga ali é uma paciente, dona Viridiana de Azevedo, que nos últimos tempos tem conseguido superar o seu mutismo e depressão, acredito que em parte graças à atenção que lhe dou. Às vezes sinto vontade de desabafar com essa senhora a minha história, mas continuo calada. Ela não mereceria saber. Mas eu continuo me lembrando, e de tempos em tempos certos detalhes do incidente voltam para me assombrar, mesmo que não cheguem a afetar minha vida prática... como a revelação de um velho colega, que me confidenciou que todos os apartamentos do prédio vazio haviam sido comprados, na verdade, por laranjas de um acionista das Indústrias Carcosa; e soube pelo jornal, que a construção sofreu outro incêndio, esse bem mais grave, há cerca de cinco anos... embora não fosse mais exatamente o mesmo prédio em que eu havia vivido: o novo dono mandou derrubar os andares superiores e o prédio foi convertido numa casa de dois pisos, onde haviam antes o térreo e o primeiro andar.


Eu não cheguei a ser indiciada por incêndio criminoso, nem nada disso. O acidente não foi tão ruim como pensei que ia ser, os bombeiros salvaram grande parte das minhas coisas, mas ninguém falou nada sobre cadernos, nem da brochura de Fabrício, nem Asrar Douda, nem Ladrão de Sinas. E para ser sincera, eu não tive coragem de procurar saber o que havia acontecido com esses tomos. Depois de quase dez anos, parece que envelheci mais de vinte, e procuro reservar minhas forças para meu trabalho. Nunca mais tive mais interesse – ou competência – em contabilidade, nem ânimo para a poesia, ou mesmo o amor. Não conseguia nem mesmo tentar.


Fabrício Montalvão nunca foi encontrado pela polícia – e ninguém jamais citou minhas impressões digitais em seu apartamento. Malgrado a incompetência da polícia de Novo Portal, isso é menos curioso do que o fato de que muitas pessoas negaram ter jamais conhecido Fabrício, como se ele nunca tivesse existido; e pareciam bastante sinceras nessa insistência...


De vez em quando voltavam lembranças de meu vizinho – e com elas, à noite, pesadelos com o que vi no livro-razão, mais até do que com o incêndio, o monstro empelotado, as fossas dentro das fossas... pelos clarões de entendimento que minha memória forçava através desses sonhos, eu estava certa de que Fabrício estava tentando evitar um mal maior, talvez desperto por ele, talvez não... mas os desenhos que lembro me deram a nítida ideia de uma prisão, de procedimentos de contenção para vedar as rachaduras de paredes invisíveis... o bisavô de Fabrício devia ter sido o responsável por aquela... armadilha, é a única palavra que consigo usar para definir o prédio vazio. Como aquela armadilhas para baratas que não vejo mais à venda, que eram pequenas casinhas de plástico negro onde os insetos entravam para comer e morriam. Só que nesse caso as coisas que estavam dentro da Fossa das Fossas não podiam morrer.


Mas podiam estender seus tentáculos através das fendas que estavam se alargando, e eu tinha certeza de que, por alguma razão, o fogo que pus no meu próprio apartamento vedou por um tempo as rachaduras. À tardinha, fico na janela de meu aposento no abrigo, diante do velho e pouco visitado monastério do bairro, em cuja igreja às vezes entram e saem pessoas de aparência solitária – e às vezes me vem a impressão forçosa de que não foi o fogo físico que teve algum efeito, mas o meu próprio holocausto, que a Luz Leprosa consumiu meu futuro: não me joguei da varanda, mas perdi minha casa (e mesmo ela tendo sido vendida, foi para outro corretor que não aquele, o dinheiro não compensou de verdade mas foi tive medo de ir ao escritório do ofertante original), meus talentos, minha vida social, e só não perdi minha sanidade porque me escondo aqui ajudando outros quem sabe mais infelizes que eu... e me protegendo de algum dia descobrir coisas que expliquem melhor aqueles eventos do passado, coisas que levem de vez minha mente e revelem porque exatamente o Tenebroso Han, maestro da morte, senhor da profecia interminável e da lemniscata serpentina, Thaagshaa dos nexos desencontrados, queria que eu fosse seu canal, sua trovadora, sua profetiza.


E em meus pesadelos eu sei que o Ladrão de Sinas se banqueteia com a mera possibilidade de, numa outra vida logo além das muralhas de meus sonhos, eu ter aceito o seu convite. Acordo suando frio e chegando à janela para tomar ar, quase agradeço pelo céu poluído e as luzes da rua lá embaixo impedirem a visão das estrelas – a visão da sabedoria estrelada que há uma década recusei.


















NOTAS E AGRADECIMENTOS
Agradeço a Zé Eduardo por uma dica sobre história e arquitetura; a Suria Neiva por tirar uma dúvida sobre os malês; a Neith War por ter provocado o estalo que levou à criação do Tenebroso Han; a Carolina Gharbi e Livia von Sucro por proporem transliterações para o Asrar Douda Haka Mafhmitikch.
A entidade “Tenebroso Han” (“dark Han”) é citada originalmente no conto O Errante das Estrelas (The Shambler from the Stars), de Robert Bloch, junto ao Yig de HP Lovecraft e a um certo Byatis das barbas de serpente, como um deus da adivinhação, no De Vermis Mysteriis. A frase na versão haúça desse tomo, “serenos e primais, invisíveis e imundos, envergando as florestas e esmagando as cidades” é na verdade uma alusão a um trecho do Necronomicon que aparece em O Horror de Dunwich, de Lovecraft. A “seita da sabedoria estrelada” é citada na – por assim dizer – continuação do Errante das Estrelas, feita por Lovecraft, “O Assombro das Trevas.” O tratamento dado ao Tenebroso Han é tanto uma tentativa de seguir o exemplo de Ramsay Campbell, que desenvolveu Byatis em seu conto The Room in the Castle – conto que infelizmente ainda não li! – quanto um encaixe perfeito para um Antigo sem nome que eu já havia imaginado. Em um documento separado, delineio o Antigo e as criaturas, cultos e tomos a ele associadas, para o RPG Rastro de Cthulhu.
Vários elementos e locais deste conto aparecem em outros de minha autoria, como O Farol na Escuridão e A Lâmina na Ponta do Reflexo, que estarão na coletânea Simetria Macabra: Crônicas do Mythos de Cthulhu.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

O FAROL NA ESCURIDÃO


Arthur Ferreira Jr .'.





As sombras da noite sem dúvida despertam a imaginação humana, e existem aqueles que, mesmo afirmando serem crescidos, ainda sentem calafrios diante do escuro da noite. E se há uma noite que todos tememos, pois ela é ainda mais inescapável que o ciclo alternante da noite mundana, é a noite da mente – o desconhecido, o inconsciente, os sonhos rapidamente esquecidos durante o café da manhã, mas que não deixam de distorcer o ânimo dos sonhadores, bem de leve, durante o resto do não tão abençoado dia.


Dessa noite da mente, fugimos toda vez que adormecemos, ficando às margens de seu abismo estranhamente familiar. Nossos sonhos se dão nessa zona liminar, nessa região de obscuridade psíquica. Às vezes sonhos iluminados reluzem em nossa mente, trazendo ideias, epifanias, alívios – e são esses sonhos, essas tochas solitárias em meio à zona uivante que cerca o abismo da noite da mente, que nos impelem a cada período de vinte e quatro horas a buscar o sono, quando um atordoamento insidioso teima – e consegue – nos dominar.


Somos como mariposas atraídas por esses fachos de luz na zona limítrofe – centelhas que nos revigoram para o dia seguinte, mas que, infelizmente, também acabam nos expondo aos perigos do abismo além do sonhar. Existem sendas e caminhos, nessa zona pouco compreendida, que desembocam como rios do além, no caos oceânico desse abismo.


E muito embora o medo desse abismo esteja sempre presente e oculto em nossa espécie humana, existem aqueles que sentem um fascínio quase mórbido pela obscuridade que se move dentro de nós... da mesma forma que o restante da humanidade é atraída pelos fogos-fátuos de inspiração que brilham nas zonas oníricas mais próximas da consciência.


Eu sou um desses fascinados, e o preço que pago por isso é grande.






Meu nome, antes que perguntem, é Virgílio de Almeida. Nome vulgar, admito, mas acredito que eu mesmo esteja longe de ser vulgar, dadas as coisas que instintivamente sei e que outros se esforçam anos para descobrir.


Nasci numa cidade-satélite de uma metrópole bem maior. Embora oficialmente pertencente ao município da grande cidade, quase um subúrbio, um parasita urbano inchado, de casinhas coladas umas às outras, Grotão era de caráter bastante distinto da urbe maior a qual estava agarrada. Soturna, de ruas e casas manchadas pela poluição de uma refinaria próxima, cheia de jardins malcuidados, árvores tomadas de trepadeiras, chácaras em mau estado e muros cobertos de hera – a região era uma verdadeira erva daninha, se comparada à vivacidade da quase capital.


Irônico que me refira assim nesses termos à minha terra natal, quando na verdade me sinto esquisitamente confortável dentro dela. Para ser bem preciso, uma fobia mal explicada me assola quando saio de Grotão, sendo que um semestre de estudos fora de seus limites, há cerca de um ano e pouco, me custou uma rotina quase insuportável de pesadelos, nervosismo e ansiedade beirando a paranoia.


Pode-se dizer então que, da mesma forma que Grotão drena a vida de Novo Portal, cidade maior à qual é pegada, eu dependo da estranha vidinha de Grotão, especialmente sua vida noturna – em mais de um sentido.


Carente de bares e botequins onde jogar conversa fora, os habitantes de Grotão desenvolveram o hábito e costume de fazer serões nos jardins de suas casas, muitas vezes jogando cartas e bebericando vinhos. Nesses serões escutei muitas histórias estranhas, e com o passar do tempo, concatenando fatos a epifanias internas, observações a reflexões, pude notar um grande padrão que se impõe nas conversas noturnas de Grotão – padrão feito de sonhos. Era costume comentar que sonhos haviam tido na noite anterior, ou mesmo durante a sesta (parece que o número de pessoas que podiam se dar ao luxo da sesta, bem como o número das que trabalham em casa, é desproporcionalmente alto em Grotão). Ora, passar a adolescência ouvindo relatos dos sonhos alheios me chamou imensamente a atenção – apesar dos meus conterrâneos, chega a ser estranho, na verdade darem pouquíssima importância aos sonhos. Para eles, sonhos eram moeda banal de troca, de conversação quase fática, que trocavam tão inconscientemente quanto todos nós pomos num reflexo a mão no bolso quando compramos algo.


Essa atenção era fruto de uma sensibilidade aguçada a padrões e conceitos. Meu pai, homem de idade já avançada quando nasci, era um matemático dedicado e, embora não tivesse exercido profissionalmente, também um linguista – imagino que se ele próprio tivesse nascido algumas décadas depois, com certeza teria se dado muito bem no campo da linguagem de computadores. Tendo me criado praticamente sozinho após a prematura morte de minha mãe, vinte e três anos mais nova que ele, essa figura paterna que há cerca de seis meses foi voluntariamente morar num asilo geriátrico exerceu grande influência sobre mim, com certeza bem mais que minha mãe morta, ou minha tia solteirona que morava conosco e mal conseguia conversar direito.


Meu velho pai tinha, como vários de sua rua, o costume de frequentar os serões de Grotão, especialmente quando me tornei adolescente e ele passou a me levar junto. Daí desenvolvi o hábito de desenhar os diagramas oníricos: anotava os fragmentos de sonhos contados nas reuniões, marcava-os com uma notação numérica, e usava os números como referenciais em grandes esquemas que esboçava em cartolina. Os números eram ligados por setas e vetores e esses diagramas eram expostos nas paredes de um quarto vago da casa de meu pai, onde moro até hoje. Posso dizer que praticamente substituíram a necessidade de papel de parede ali – é provável que haja mofo debaixo dos esquemas presos à parede: às vezes em dias quentes um estranho odor domina o aposento, e Grotão é um lugar muito úmido – mas não consigo reunir disposição suficiente para retirar tudo e fazer uma limpeza.


E de onde vinham as setas e vetores que ligavam os sonhos de tantos moradores do subúrbio de Grotão? A princípio, a intuição e uma análise talvez grosseira me guiavam. Pequenos detalhes recebiam às vezes um peso maior do que similaridades óbvias. Com o tempo tornou-se complicado representar a diferença nos relacionamentos entre os diferentes sonhos, e passei a usar números para representar esse peso, nas flechas que ligavam os sonhos anotados nos cadernos guardados no mesmo aposento de cheiro mofado. Logo depois de ter experimentado isso, uma sensação de inadequação estética e de erro me assaltou e removi toda a notação numérica dos sonhos em si, substituindo-a por símbolos. Cada sonho agora recebia um sigilo desenhado tanto no diagrama quanto na anotação de caderno. Era aí que minha estranha intuição, que minha tia dizia ter sido herdada de minha mãe, agia com mais força: a escolha dos sigilos mal tocava minha mente consciente, era quase escrita automática – uma única relida na anotação, e o sigilo era imediatamente desenhado em seu cabeçalho e logo depois, com uma rapidez frenética, no diagrama onírico a ser exposto na parede.


Os poucos de fora da família que chegaram a contemplar as paredes cheias de esquemas e símbolos geralmente deixavam-se arrastar por um longo fascínio e murmuravam curtos comentários às vezes sem nexo. Nenhum desses – quase todos colegas de escola – fazia parte dos grupos que organizavam os serões, embora eu tenha quase certeza de que notícia dos diagramas fora cair nos ouvidos de alguns participantes, que pararam de descrever sonhos em minha presença. Em geral, contudo, a rotina da troca de relatos continuava inalterada, fornecendo dados e dados que geravam mapas e mais mapas de sonhos e visões noturnas.


Essas mandalas me tomavam mais tempo do que era conveniente, e embora meu pai de início enxergasse tudo com uma certa curiosidade e assombro, começou depois a fazer comentários sobre a inutilidade daquilo, sobre o caráter fantasioso da notação numérica e simbólica, culminando com sua ideia de me fazer morar fora, na cidade grande, para estudar em uma de suas universidades com mais facilidade (às vezes a viagem entre Grotão e Novo Portal levava quase três horas, de ônibus). Essa mudança de atitude coincidiu com o gradual diminuição da frequência no comparecimento às reuniões de jardim. Cheguei a argumentar que um carro resolveria todos os problemas de transporte, e que eu era disciplinado o suficiente para acordar cedo todo dia, mas meu pai não quis nem ouvir falar disso. Ao contrário de vários de meus colegas, que receberam de presente um automóvel ao entrar na faculdade, eu tinha um pai que dificilmente cogitaria em gastar parte de suas economias que ele guardava para meu futuro (e sim, para numa casa na cidade) com um carro. E agora, minha mania, dependente dos serões de nossos vizinhos, e no fim das contas dependente da própria Grotão, com certeza seria interrompida se ele não me desse mesmo carro nenhum – pronto, estava decidido.


O pai pagaria as custas do aluguel de um apartamento enquanto fosse preciso. Bom, já devo ter mencionado que a coisa toda não durou mais de seis meses, não foi? Mas é preciso tanto agradecer quanto me arrepender desses seis meses e da teimosia do velho.


O que deveriam ter sido quatro anos, no mínimo, de permanência na cidade grande, me esperavam. Um pequeno apartamento quarto-e-sala no antigo centro de Novo Portal, conseguido por intermédio de um dos raros amigos de minha tia, seria minha base sólida durante esses anos. Todos os meses meu pai me mandaria um dinheiro para pagamento do aluguel e demais despesas – eu não precisaria, por enquanto, me preocupar em fazer bicos ou ter um emprego de meio período, porque meu pai fazia questão de assegurar que eu não usasse a eventual fadiga como argumento para fazê-lo voltar atrás.






Tinha completado dezessete anos há poucos dias quando me instalei no dito apartamento, e a primeira noite que lá passei me deu a impressão de ser a pior noite da minha vida – embora eu não soubesse que era apenas o começo. Por uma fortuita combinação de proteção excessiva de minha tia, e de um certo desinteresse inato pelas coisas fora de minha vizinhança, eu nunca havia dormido fora de Grotão. Já havia visitado a cidade grande, e já havia dormido na casa de amigos e até de uma ex-namorada, mas nunca de fato dormido fora do estranho subúrbio. E naquelas noites em meu novo lar conheci uma terrível mescla de liberdade e pavor.


Custei a dormir. Ou na verdade, custei a me dispor a dormir – a arrumação das coisas e mobílias demorou mais que eu imaginava, e depois de tudo eu ia e vinha pela casa, a cada instante notando pequenos detalhes que me passaram despercebidos durante o dia (teias de aranhas ocultas em cantos escuros, farelo de pão acumulado debaixo de uma das janelas, pregos nas paredes que talvez antes segurassem quadros, uma pilha de papéis amarelados aparentemente largada pelo inquilino anterior no fundo de uma gaveta, um esquisito e inédito cadáver de uma barata branca debaixo da cama). Por volta das duas da manhã finalmente me coloquei na cama, mas acho que só consegui dormir lá pelas três horas, já que antes fiquei me virando e revirando sozinho pela cama de casal.


Ao contrário do que sempre acontecera até então nos meus períodos de sono em Grotão, consegui perceber o instante preciso em que adormeci – e só não cheguei a registrar a hora e minutos exatos, porque não deixo relógios nem celular ligados perto da cama. Meus olhos se fecharam e a escuridão resultante começou a tremular diante de mim.


Comecei a andar no meio daquela massa informe de trevas, e o mais estranho é que ela parecia curiosamente gélida ao toque, e não fugaz e imaterial como todo aglomerado de escuridão. Era uma coisa entre gás denso e líquido viscoso. Era possível não só sentir, mas ouvir bem alto, um ritmo de batidas regulares, que não vinham de nenhum ponto obscuro à distância, mas sim de mim mesmo – o ambiente tenebroso parecia responder a essas batidas, como um dedo constante e repetidamente perfurando a superfície de um lago, provocando ondas concêntricas.


A diferença estava em que as emanações centradas em mim afetavam não uma superfície bidimensional, mas uma medonha zona de no mínimo três dimensões – algo me fazia desconfiar que o tempo se distorcia mais além, e só aquele ritmo constante que saía de mim fazia a escuridão se estabilizar num espaço em que eu pudesse me mover direito. E apesar de poder me movimentar, não tinha pista alguma de onde estava indo. 


Um vago e crescente horror começou lentamente a me assaltar – era de se estranhar que aquela sensação aterrorizante houvesse demorado tanto tempo para se manifestar naquele espaço onírico, pois pelo menos três minutos percebidos haviam transcorrido desde que meus olhos haviam se fechado, mas era como se minhas reações emocionais estivesse mais lentas, embora inevitáveis – e percebi, o que fez o horror aumentar exponencialmente, que me deixar levar por aquele surto gerava consequências... físicas, ou pelo menos físicas de acordo com a perspectiva do sonho.


Meu medo se espalhava junto com as emanações que meu corpo emitia, provocando uma espécie de … não posso dizer terremoto,  já que não estava na terra... uma espécie de distúrbio espacial, um tremor psíquico que se expandia. E com o tremor minhas percepções iam junto, me fazendo conseguir sentir toda a escuridão que me envolvia. E a escuridão reagia. Ela se tornava mais densa, mais viscosa, mais enredante, e eu me sentia como se imerso num cipoal – tentáculos feitos de distorção e colapso se erguiam numa única onda que tentava rechaçar o meu próprio ser.


Conforme minha percepção se espalhava pelo abismo ao meu redor, eu enxergava, ouvia – e pior, sentia o gosto e o odor – dos tentáculos que se agitavam à minha volta. Numa revolta rápida, a viscosidade sombria que originalmente me cercava foi despedaçada pelos tentáculos de espaço distorcido (eram como feridas no cosmos, ferimentos, rachaduras e fendas que se moviam num turbilhão intenso, pulsando de modo tão bizarro que revelavam uma estranha e anômala consciência). A escuridão foi assim rasgada, e eu caí num túnel de paredes circulares e espelhadas, por uma longa eternidade, até ser despejado, gotejante como se coberto por um líquido amniótico, numa planície extensa que se espalhava até onde meus olhos conseguiam enxergar, onde atingia um horizonte malva.


Quando tempo andei por essa planície vazia e esbranquiçada, meus pés pisando um chão indefinido e brumoso que cedia devagar se eu parasse muito tempo num só lugar? Não quis descobrir o que me aconteceria, ou onde cairia, se parasse para descansar, e errei pela planície de Thangar-Baru por vários e vários milênios... até que um inesperado meteoro cruzou o céu malva, uma estrela cadente que incendiava aquela atmosfera mórbida, e num estrondo atingiu Thangar-Baru, estilhaçando aquele domínio onírico e me fazendo acordar com um salto e correr sem pensar até a janela semiaberta.


Depois de acalmar minha respiração, levei alguns minutos para perceber duas coisas extraordinárias: o relógio digital encimado num poste da rua indicava 01:01 – duas horas antes do horário em que adormeci – e, de onde havia tirado o nome Thangar-Baru?






O dia seguinte foi marcado por extremo cansaço. Eu conseguira adormecer normalmente, caindo num sono sem sonhos, depois daquilo, mas só por volta das cinco horas da manhã. Ou do que acho que seria as cinco da manhã. A princípio pensei que alguma coisa me fizera dormir mais de 24 horas seguidas, e ter acordado à uma hora significava ter dormido durante todo o dia – mas não era o caso. A data era a mesma (a madrugada de 23 de março), assim mostrava o relógio digital exposto lá fora. Estranhamente, meu celular estava desligado e assim não pude ter uma noção muito clara se ele havia misteriosamente se atrasado e na realidade eu me atrapalhara, e só havia achado que adormecera por volta das três da manhã. Ao ser religado, o celular havia perdido o registro de hora e data.


Parecia que o celular não estava sozinho em seu problema, porque o único outro aparelho eletrônico que estava ligado na casa também estava desligado – um microsystem que estava em stand-by na sala. Esse não quis funcionar durante três dias, e como não tive tempo de levá-lo num técnico, por três dias ficou mudo até que ao voltar para casa na noite do dia 26 o aparelho estava ligado, e não houve explicação nenhuma de como isso havia acontecido.


De qualquer forma, durante esses três dias, eu, que nunca sofri de pesadelos em toda minha vida, fui obrigado a uma alternância noturna de sonhos ruins e insônia. Aliás, não só noturna, já que qualquer cochilo que tentava durante o dia também invariavelmente terminava em frustração ou em viagens oníricas medonhas. O trajeto era mais ou menos o mesmo: a ondulação que se espalhava de mim mesmo, a batalha dos tentáculos contra a escuridão, o eventual fragor das trevas entrando em colapso e a queda quase eterna até ser expelido numa planície que eu tinha a certeza total e absoluta que se chamava – se chamava, não, ela se chama assim, já que ainda está lá – Thangar-Baru.


A perambulação naquele ermo branco e malva levava muito tempo dentro do sonho, até que algum incidente estranho a interrompia. Se da primeira vez houve a queda de um meteoro, da segunda vez encontrei um estranho poço que se erguia das brumas baixas e, ao observar suas profundezas, um jorro de chamas verdes se ergueu dele formando uma coluna que ia até o céu malva, e o clarão doentio me cegou de imediato, me obrigando a despertar. Da terceira vez, um enxame de pequenas coisas ia se aproximando bem lentamente, as minúsculas pernas articuladas e frenéticas quase invisíveis na bruma branca. Tentei me afastar delas, mas era inútil, acabei sendo alcançado e – é difícil descrever exatamente a sensação da coisa toda – devorado vivo por aquele enxame que não tinha fim, minha consciência se dispersando pelos corpos dos ínfimos e aberrantes seres. A horda de entidades híbridas entre crustáceo e aracnídeo, cada um deles com onze patas articuladas e assimétricas ao redor de um corpo revestido por uma quitina oleosa, marchou indiferente até a as bordas de Thangar-Baru e atravessou uma bizarra cortina intangível de cor malva … me fazendo acordar.


Pois bem, se todo meu costume de pesadelos se restringia a relatos alheios, devem imaginar então o sofrimento dessas três noites de pesadelos bem fora do comum e além de qualquer estranhamento presente nos sonhos em Grotão. Essas três noites foram acompanhadas de três dias em que articulei as coisas de modo a me preparar para a universidade. Em nenhum deles almocei dentro de casa. Era compreensível: a casa estava me dando medo, por causa dos pesadelos, e eu a evitava, a não ser para dormir. Como consequência, a maioria das minhas coisas ficou bagunçada, o que ainda piorava a sensação de alheamento que sentia dentro daquele lugar. E naqueles três dias, só uma coisa me aliviou o cansaço provocado pelas providências a tomar e pelos estranhos e inesperados pesadelos.


Essa coisa foi Anna.






Não vão achar ruim que chame uma mulher de “coisa.” Também não tem nada a ver com o conceito de mulher-objeto. Longe disso. Na verdade, como os leitores perceberão mais adiante, essa palavra faz total jus à moça que almoçava no mesmo restaurante que eu.


Eu passava mais tempo naquele restaurante que somente tomando café e almoçando: antes e depois das refeições, fazia anotações em meu caderno, pondo no papel minhas impressões a respeito dos misteriosos pesadelos que estavam me acometendo. Pela primeira vez, eu tinha o ânimo de fazer a crônica dos meus próprios sonhos, e não os da vizinhança. Às vezes fazia tentativas de desenhar a planície branca e nebulosa onde sempre vagava, mas quase sempre esses garranchos e esboços eram inconclusivos. Thangar-Baru parecia altamente elusiva, indescritível.


Também fazia esboços das coisas que experimentava nos sonhos, e delas extraía um sigilo correspondente. No segundo dia de almoço notei que uma moça, que no dia anterior estava sentada numa das mesas próximas, estava me observando com um mal disfarçado interesse. Era uma ruiva de cabelos longos e levemente ondulados, olhos castanho-esverdeados, não muito alta. Sua expressão de sobrancelhas erguidas me exercia um certo fascínio, era como se ela emanasse uma aura que atraísse e ao mesmo tempo deixasse o atraído naquela zona liminar, próximo mas sem a coragem de se aproximar.


E é claro, não tive a coragem de falar com ela. Nem teria exatamente o que falar. Provavelmente ela teria alguma razão, como eu tinha, de almoçar ali todos os dias (era tão prático e aconchegante), quem sabe mais tarde, com a convivência visual eu chegasse a conseguir conversar com ela; mas de qualquer forma eu me sentia exausto. Porém não foi preciso que um ritmo habitual se estabelecesse, porque no terceiro dia, quando eu desenhava as figuras daquela terrível e paciente horda de animais híbridos, Anna veio falar comigo.


“Está na EBANP?” Falou ela por trás de meu ombro esquerdo, referindo-se à divisão de artes e design de uma das mais conceituadas academias de Novo Portal. Interrompi o esboço e me virei para responder; de onde ela estava, conseguia enxergar vários outros desenhos e sigilos e símbolos e até mesmo a leve tentativa de um novo diagrama onírico.


Seu rosto era franco, mas o olhar era insidioso, com uma certa malícia. Mas não cheguei a hesitar. “Não, não, estou para entrar no curso de psicologia. Por quê? Acha que isso aqui tem algum valor?”


“Sem dúvida. Você parece não ter muita técnica, muita experiência, mas esses seus desenhos transmitem algo... melhor dizer que revelam alguma coisa. Não estou certa?”


Agora sim eu hesitei. Dava até a impressão de que ela sabia alguma coisa, mas isso era impossível. Ou pelo menos eu achei que era impossível – o tempo provou que eu estava mais do que errado. Mas estou me adiantando. Antes que eu pudesse responder qualquer coisa (nem lembro o que ia dizer), um tamborilar frenético de chuva sobre o toldo se fez ouvir, e um vento varreu a parte da frente do restaurante, derrubando vários dos meus papéis e nos obrigando a correr para catá-los com urgência.


Depois que tudo foi salvo (ou o que achei que era tudo; depois, em casa, fiquei com a impressão de ter sumido um dos esboços), e nos movemos para a parte coberta por telhado do estabelecimento, a ruiva sorriu e fez um comentário: “Parece que vamos passar um bom tempo aqui.  Qual o seu nome?”






Ela não podia estar mais certa, pois a tempestade que se seguiu durou mais de três horas e soube depois que houve inundações nas partes mais pobres da cidade. E daquelas horas de conversa surgiu o hábito de nos encontrarmos ali e palestrarmos durante mais tempo do que era necessário para almoçar. Descobri que era mesmo uma artista plástica, estudando na mesma faculdade que eu (a mesma Universidade Federal de Novo Portão que ela mencionara para quebrar o gelo), e era seu primeiro semestre ali, mas não o primeiro semestre no curso.


Parece que havia sido estudante de intercâmbio nos EUA, numa cidade de nome estranho em Massachusetts, chamada Arkham (o que tinha a ver com o fictício Asilo Arkham das histórias do Batman, não sei) e que estava atrasada, talvez por ter pego diversas matérias que à primeira vista nada tinham a ver com seu curso – de música, matemática e até de arqueologia. Dizia ser muito curiosa e dispersa: e na primeira vez em que fui em sua casa, cheguei a ver largada num canto a caixa de um remédio que sei que servia para um transtorno, distúrbio ou síndrome que mudou de nome várias vezes nos últimos anos. Num momento em que ela fora no banheiro, notei que a caixa estava cheia.


Enquanto isso a rotina de encontros com Anna se somou à rotina da faculdade, que muito me interessou, até o máximo que permitia meu cansaço perene, porque havia uma terceira rotina, a dos pesadelos. Toda noite um episódio estranho acontecia em Thangar-Baru. Alguns deles se repetiam, mas não de modo idêntico. E Anna tinha um interesse ardente nesses meus sonhos – pedia detalhes, apreciava os esboços (embora eu escondesse dela alguns dos mais extravagantes, ou que tivessem alguma semelhança com os diagramas que fazia na casa de meu pai). Um dia, não havia completado um mês de aulas, ela comentou que se eu só tinha esses sonhos no apartamento, então era porque o apartamento devia ser o culpado – e me chamou para dormir em sua casa.


Eu só havia estado nessa casa dela uma vez, antes. E ela nunca fora na minha própria casa. O convite parecia estranho, porque não estávamos namorando – tudo o que fazíamos era conversar, e fora o tom muitas vezes malicioso da voz de Anna, sua malícia se resumia à voz, aos olhos brilhantes e às vezes a maneira de caminhar, e nunca se expressava como sugestões verbais. Alguém poderia me dizer que isto já seria suficiente para determinar que ela estava emitindo sinais, mas é que ao mesmo tempo, durante aquele mês, é como se ela erguesse uma barreira invisível que desencorajasse qualquer aproximação maior. E de fato invisível e indefinível era essa barreira, porque ela estava longe de ser feia, desinteressante ou pouco inteligente. Pelo contrário, me dava a impressão de ser a mulher mais astuta que eu já conhecera. Até aí, a minha própria idade reduzida, de um calouro do lado de uma veterana de intercâmbios de aparentes 23 anos, podia ser a razão do fascínio misturado com aversão que sentia por ela.


Não vi como recusar o convite. Na primeira vez em que estivera na casa onde ela morava sozinha, eu não passara da sala; só havíamos passado lá para ela pegar uns livros e ir ao toalete. Fora quando eu notara a caixinha de remédios. Alguma coisa me fez não mencionar que reparara na caixa, nem mesmo que mexera nela e a achara com todos os comprimidos no lugar. Agora as coisas eram diferentes: eu ia dormir na casa de Anna.


O que chamava mais a atenção naquela sala não era a caixa de remédios que provavelmente não estaria mais lá, mas uma profusão de quadros de aparência bizarra. A maior parte deles era cubista ou medievalista, e não sei quais deles eram reproduções e quais eram genuínos. Um dos quadros chamava a atenção não por ser psicodélico ou arcaico, mas pelo realismo – se é que posso chamar de realismo uma representação de um ser tão grotesco, semi-humano com traços caninos. Naquele dia, quando perguntei quem era o autor daquilo – não deixava de ser uma obra de arte, embora das mais perturbadoras – ela disse que trouxera o quadro da sua temporada de intercâmbio, que o autor chamava-se Richard Pickman, que haviam pouquíssimas obras dele disponíveis, e que ela havia gasto quase todo o dinheiro sobressalente da viagem com essa e outras obras obscuras. Quem sabe depois ela me mostrasse as outras, acrescentou.


Quem sabe o meu convívio com Anna me distraísse de alguma forma dos meus sonhos, porque embora eles não houvessem cessado, eu me sentia menos exausto nos dias em que a encontrava. Levando isso em conta, por estranhas que fossem essas e outras obras, não se comparavam com os horrores de meus sonhos; então, se a opinião dela fosse correta, não me custaria nada passar a noite perto das tais obras de arte – que, segundo ela, não se restringiam a quadros, havia também esculturas, fotografias, gravações musicais e livros raros. Ela se definia como uma apreciadora do exótico; mas eu, depois de ver apenas os quadros da sala, enxergava pouca coisa de exótico e mais de macabro.


O que eu poderia definir talvez como no mínimo exótico era a escolha de lugar para morar. A casa, onde ela morava sozinha, havia sido anteriormente um prédio de apartamentos de três andares. Por alguma razão que ninguém comentava ou sabia explicar, o ex-dono do prédio mandara derrubar os dois andares superiores e toda a estrutura havia sido convertida numa casa de dois pisos. Quem prestasse atenção ao entrar na casa, como eu iria fazer, notava a simetria provocada pela antiga disposição de quatro apartamentos por andar. No meio deles havia um poço, para o qual davam quatro janelas no primeiro piso e apenas três no segundo – a oitava janela havia sido emparedada, sabe-se lá por qual motivo. Para quem morava num apartamento pequeno, de bizarras discrepâncias no pé-direito, meio torto e mal estruturado, a casa deveria me confortar, mas não foi o caso: aquela simetria agia sobre mim como se as paredes da casa servissem como os muros de uma prisão, uma sensação vagamente claustrofóbica que nunca havia sentido antes num ambiente tão espaçoso.






Foi essa sensação que me arrebatou naquele fim de tarde em que Anna abriu a porta para que eu entrasse, com um sorriso mais malicioso do que o normal. Eu teria demorado mais um pouco observando melhor a fachada da casa – ela não estaria mal colocada em Grotão, me causava uma certa nostalgia – mas sobreveio um temporal tão logo a dona da casa abriu a porta. Essas pancadas de chuva inesperadas estavam ficando cada vez mais comuns na cidade.


Deu para perceber, logo de cara, que alguns dos quadros haviam sido trocados. Havia também uma novidade – umas caixas de papelão abertas no chão perto da mesa de mogno, e em cima da tal mesa, lado a lado, duas esculturas que não pareciam muito normais. Uma delas era uma coisa deformada em baixo-relevo, feita de argila; provocava arrepios ao ser contemplada, e o ser monstruoso cercado por uma escrita desconhecida parecia um cefaloide alado, tendo como pano de fundo uma cidade ancestral. Não chegou a me alterar muito o humor, contudo, porque havia a segunda escultura: uma tartaruga de marfim, finamente esculpida, de olhos quase vivos e casco detalhado. Peguei a tartaruguinha na mão e era tão linda e pitoresca, que o baixo-relevo perturbador perdia qualquer importância.


“Não se anime muito,” Anna interrompeu o meu devaneio com a escultura, “não é o original. Ambas cópias muito bem-feitas, senão você não estaria aí com essa cara.  Quem as fez era um artista inspirado... tão inspirado quanto você, eu acho.”


“Continua achando mesmo que sou um artista, não é?” Pus a tartaruga de volta à mesa e dei uma boa olhada ao redor: alguém havia feito uma bela faxina, os móveis estavam brilhando e não havia uma só grama de poeira no chão. Mesmo assim, o jeito antisséptico do ambiente me incomodava. Se as paredes me lembravam, de leve, muros de prisão, o piso e próprio ar que me cercava davam a impressão de estar num hospital – dava quase para cheirar o éter. Devia ser algum produto de limpeza que eu não conhecia.


“Pelo menos eu acho que vocês bebem das mesmas fontes.” O sorriso de Anna dessa vez foi até predatório, mas ela logo colocou-se numa postura relaxada e até sedutora, me fazendo cair a guarda de novo. “Foi um rapaz que conheci numa enevoada colônia de artistas durante o ano de intercâmbio. Para o seu conselho, dizia que artista não escolhe ser artista, só aceita o fardo. Quando fui embora, ele ficou me devendo e pagou com estas esculturas. Não foi a única coisa que trouxe de lá, mas depois lhe mostro. Minha casa não é um museu, pode ficar mais calmo, não precisa ficar assim, com essa cara. Sente aí que eu vou buscar alguma coisa para bebermos.”


Enquanto ela sumia nos fundões da casa (Por que não havia um bar na sala?  Do jeito que devia ter dinheiro, nada custava instalar um móvel assim... ou será que tinha uma adega em algum lugar?), pus a mochila com minhas coisas de lado, e tentei relaxar num dos sofás, mas não consegui. O arranjo das pinturas na parede, como mencionei, havia mudado; e a nova disposição parecia diabolicamente hipnótica, simetricamente sugestiva. Acabei levantando, e examinei boa parte dos quadros. Havia alguma coisa que me chamava a atenção naquilo tudo, e como era de meu costume, peguei o meu caderno de anotações na mochila, e copiei a disposição dos quadros nas três paredes em que eles estavam expostos.


Parecia estar demorando demais, então eu cheguei a referenciar quais quadros estavam em cada posição... e como dos onze quadros exibidos, apenas dois tivessem o nome na parte inferior da moldura, desenhei sigilos abstratos e sintéticos para representar os outros nove; e acabou me dando na cabeça, depois que vi que ela estava demorando mesmo, de elaborar sigilos até mesmo para aqueles quadros que tinham nome.


Era como se eu estivesse de volta a Grotão, só que em vez de relatos oníricos, eram imagens. Valeria a pena descrever esses quadros, ou citar seus nomes? Mas se estou dizendo que aquela simetria macabra me chamava mais a atenção que as próprias imagens?


A única parede sem quadros estava tomada por uma enorme estante com alguns aparelhos eletrônicos, televisão e som, pela porta para o interior da casa e pelo sofá onde eu deveria estar sentado. Daquele sofá você teria uma visão abrangente dos quadros... e também de outras coisas na sala que pareciam fazer parte da disposição simétrica em questão, a saber, dois candelabros antigos pendendo do teto, a porta da rua, dois tapetes de cor verde-musgo no chão e... o próprio sofá onde eu acabei finalmente me sentando.


Não pude respirar nem três segundos naquele sofá, porque de dentro da casa veio o estardalhaço de uma garrafa quebrando.






Saí correndo, quase em pânico (todo o processo de observação do diagrama havia me deixado sensível naquele momento), na direção do som estilhaçante. Passei por um corredor com três portas e uma delas, a segunda, estava aberta. Era a cozinha. Ou na verdade uma das cozinhas da casa. Corri até ela, e o pânico deu lugar ao choque.


Os fragmentos de vidro se espalhavam por todo o chão ladrilhado. Os maiores cacos concentravam-se ao redor e sobre uma enorme poça de líquido rubro. Levemente curvada na direção da poça, Anna segurava o pulso ferido, escorrendo um filete de sangue – e naquele instante tive a mórbida impressão de que todo aquele sangue derramado no chão viera daquele filete que pingava sobre a poça.


Ela ergueu os olhos e esboçou um sorriso sem graça, ou quase. Parecia estar se divertindo e ao mesmo tempo resignada. E, junto com o sorriso, veio o cheiro inebriante do vinho derramado no chão.


Era vinho tinto.


Como é que não tinha sentido aquele cheiro tão forte de vinho, ao chegar na soleira da porta, eu não sei, mas posso atribuir ao meu estado de nervos um tanto alterado, pressionado pelo cansaço e pela antecipação.


Rapidamente eu a ajudei a se recompor e ela pediu ajuda para lavar o ferimento. Segundo ela, ao manusear a garrafa quebrada, a derrubou e um dos estilhaços, ao pular do chão, atingiu o seu pulso, quase na artéria. Por isso estava rindo, ela disse – era um riso nervoso, porque poderia ter sido muito pior.


Lavamos o seu pulso num lavabo no fim do corredor, bastante perfumado, mas que não conseguia disfarçar de todo aquele odor de produto químico que havia sentido ao entrar na casa. Esse cheiro era indefinível: se você conseguir imaginar uma mistura de éter e água sanitária, terá conseguido chegar perto do onipresente cheiro daquela noite na casa de Anna.


Depois de ter enfaixado com uma gaze o seu pulso, Anna voltou comigo à sala. Quando passamos pela porta da cozinha, vi aquela mancha vermelha no chão – o vinho derramado, que formava um padrão esquisito, não muito normal para uma poça de líquido derramado. Parecia mesmo que a poça havia se deslocado um pouco durante aqueles minutos em que estivemos no lavabo. “Não vamos limpar esse chão?” perguntei à dona da casa, antes de tomar qualquer iniciativa.


“Não. Estou cansada depois disso, deixa aí, usamos a outra cozinha se for preciso, perdi até a vontade de beber. Vamos para a sala.” Com um suspiro de alívio, ela pôs um braço em volta dos meus ombros, seu perfume cítrico enfim vencendo o cheiro esquisito da casa, e discretamente me guiou até o sofá da sala onde...


…Onde eu havia deixado o diagrama recém-desenhado.






O olhar de Anna desceu até o papel mal dobrado, parou por cerca de dez segundos, analisando com um certo cuidado, seguindo com um longo e profundo suspiro. Era como se ela estivesse só checando e confirmando. Permaneci calado, e minha anfitriã voltou aqueles olhos que antes eram quase verdes, mas que ali, sob a estranha iluminação de sua casa incomum, me davam quase a certeza de serem amarelados. Ela estendeu a mão que antes envolvia meus ombros e segurou meu rosto, dizendo:


“Por quê você faz isso? Que está procurando com isso?”


A palma de sua mão estava levemente suada, e do lado esquerdo de sua testa eu podia ver uma pequena gota de suor, descendo vagarosamente. Até três minutos antes, mesmo com a agitação do acidente com a garrafa, ela não parecia estar suando assim – pelo contrário, sua pele sempre mostrou uma suavidade e impecabilidade fascinantes, que me davam a vontade de tocá-la. Pois bem, aquele toque era completamente diferente do que eu imaginava que seria. Úmido. Palpitante. Forçoso, invasivo.


Tentei controlar meu próprio nervosismo – nunca mulher alguma me deixara tão agitado, tão perturbado; e se não fui exemplo de conquistador até então, namoros curtos e pequenos casos não me faltaram na juventude em Grotão.

“Procurando? Que quer dizer?” Tentei erguer minha mão para segurar a cintura dela, de certa forma reagir àquela intimidade nova, mas não consegui. Era como se ela segurasse minhas rédeas, enquanto provocava com suas esporas maldosas – como aquela mão morna e suada, a postura firme e altiva de seu corpo, e seu olhar ao mesmo tempo sonolento e transfixo.


A outra mão de Anna segurou o outro lado do meu rosto, ela se aproximou um ou dois centímetros, e exalou estas palavras: “O mapa. Você desenhou um mapa. Quem usa um mapa, quer encontrar algo, procura alguma coisa, tenta se localizar, achar uma razão para a existência, quer definir algo, trazer esse algo à realidade, não estar mais perdido – você estava perdido, meu querido?”


Não consegui responder, mas dessa vez consegui pôr as mãos em volta da cintura dela. Era como se aquilo fosse uma confrontação: e confesso que estava perdendo. Os olhos da garota pareciam cada vez mais amarelados, quase dourados, sua boca carnuda abria e fechava durante suas falas, de um jeito que parecia estar mastigando algo invisível. Os dentes eram tão alvos, notei; sua cintura, tão gostosa de segurar, era como explorar um território ao mesmo tempo proibido e extremamente familiar... o que era aquela sensação?


Ela continuou, e empurrou os quadris para a frente, “Quer se perder de novo, meu querido? Quer me penetrar de novo?” De novo, como assim? Eu podia não saber direito do que ela estava falando, mas a situação toda me fazia não querer maiores explicações, pelo menos não explicações verbais.


A boca de Anna era levemente salgada, um alvoroço tomou conta de mim enquanto a beijava. Era uma fome sendo saciada, e uma sensação martelante de estar caindo num precipício sem volta.


Rapidamente estávamos sem roupa sobre o chão duro entre os dois tapetes. O pensamento paradoxal de familiaridade e proibição aumentava a cada carícia que trocávamos, a cada movimento de minha língua sobre os seios de Anna, a cada movimento de seus quadris sobre mim, quando subimos no sofá, fazendo sexo sobre o próprio diagrama que havia provocado aquele diálogo absurdo. Enquanto ela se contorcia sobre meu tronco, seu pescoço se esticava para trás num gesto de prazer, e a língua saía da boca, serpenteando malva... malva, pouco a pouco sua pele branca se tornou mais e mais da cor das brumas daquela planície que todas as noites eu visitava; num movimento violento ela se jogou no chão comigo por cima, atordoado, ainda a penetrando, e a realidade ao meu redor se desfez, eu caía de novo naqueles túneis de paredes espelhadas, só que dessa vez sentia estar absurdamente caindo para cima; a explosão de tentáculos apareceu ao redor de mim, e voltou ao meu corpo, sendo absorvida num espasmo involuntário.


Balancei a cabeça, horrorizado e excitado ao mesmo tempo, e me vi semierguido, nu, trêmulo, numa cama de um quarto desconhecido.






O rico aposento não estava em condições tão boas como sua opulência poderia sugerir. A cama onde acordei estava totalmente desforrada, lençóis jogados pelo chão; alguns deles até mesmo rasgados. Prateleiras e prateleiras faziam guisa de estante, espalhadas pelas paredes de pintura um tanto descascada. Os pregos de algumas das prateleiras estavam bastante corroídos, enferrujados. Além disso, em frente à cama havia um tipo de móvel de madeira negra e ferro, com cinco gavetões desproporcionais, e três porta-incensos soltando fortes odores no quarto. Junto ao incenso queimando, vários livros abertos e papéis amontoados. O que mais chamava a atenção naquele lugar estranho mas um tanto aconchegante (como se já estivesse dormido várias vezes ali), era a comprida rachadura vertical correndo pela parede logo atrás do tal móvel. Tanta atenção que você quase esquecia que o quarto não tinha porta!


Praticamente entrei em pânico. Olhei para meu corpo nu e sobreveio uma pavorosa sensação de deja vù; uma mancha rubra se espalhava pela cama e pelos meus quadris, com padrões quase idênticos ao da mancha de vinho no chão da cozinha, mais cedo... exceto que aquele líquido me encharcando não era vinho, e sim, sangue. 


Levantei-me desesperado, para caçar uma saída daquele inferno. Só aí notei que havia uma porta no quarto: mas que louco colocaria a cabeceira de uma cama de casal virada para uma porta, obrigando a quem quer que fosse se esgueirar e espremer para sair ou entrar do quarto? Me acalmei um tanto, e prestes a abrir aquela porta para procurar minhas roupas e tomar um banho, onde quer que fosse, meus olhos instintivamente se voltaram ao esquisito móvel atrás de mim: a madeira dele havia estalado, e naquele silêncio e situação qualquer ruído soava como se flagelos vibrando no ar.


Para aumentar minha surpresa, vários dos papéis dispostos sobre esse móvel eram alguns de meus diagramas oníricos, daqueles que eu pendurava nas paredes da casa de meu pai. Entre esses diagramas achavam-se vários livros abertos – chequei os títulos numa pressa curiosa e inadequada: Azathoth e Outros Horrores, poemas de um certo Edward Derby; Anotações Matemáticas Compiladas de Walter Gilmor; O Rei Vestido de Amarelo, uma Reconstituição Histórica; um volume sem título nem capa, com capítulos de nome Teratosofia, Placas Tectônicas da Terra dos Sonhos, Cavalgando a Esfinge Negra e Simetria Macabra; Manuscritos Pnakóticos (este o mais volumoso e desordenado); um livro de psicologia, intitulado Percepções Anômalas do Tempo, do dr. Wingate Peaslee (já ouvira menção deste autor, por um dos meus professores); uma espécie de roteiro de cinema datilografado, de nome O Legado de Eibon; e até um libreto de ópera de um tal Bordighera, cheio de anotações manuscritas nas margens.


Fiquei tão atordoado checando aqueles livros e diagramas, que não ouvi nem percebi a porta do quarto se abrindo... até que eu me voltasse para trás, a visse a cama manchada entre a porta aberta e o corpo desnudo e curvilíneo de Anna, uma mão segurando um cacho ruivo, a outra uma toalha vermelha, quase da mesma cor do sangue que manchava também os quadris e o púbis cuidadosamente depilado da garota...


“Olá, meu querido.  Dormiu bem?” Ela foi chegando mais perto, como se tudo estivesse exatamente como ela desejava, e tudo muito bem, obrigada. Estendeu a toalha vermelha para mim. “Quer tomar um banho? É melhor mesmo uma boa ducha... não acha? Sabe, você não foi o único que caiu no sono logo depois da transa, e bem rápido aliás, que eu não fiquei chateada.” Percebendo (ou fingindo só então perceber) que eu estava meio paralisado, me tomou pelo braço: “Vamos então?”


Quem sabe a água caindo sobre meu corpo acabasse me despertando de verdade, pensei, e eu acabasse descobrindo que era tudo um sonho erótico mesclado a um pesadelo. Ou então, no mínimo, eu acordaria direito, e poderia fazer as perguntas que me afligiam. Por enquanto, por mais perturbadora que fosse a situação e mesmo a presença daquela minha companheira, algo me dizia para aproveitá-la antes que tudo sumisse, ou então que tudo piorasse, tornando-se ainda mais enigmático e estarrecedor. Ela me conduziu até a porta – será que essa porta estava trancada, enquanto eu dormia? – e entramos num toalete, que tinha uma outra porta, esta entreaberta, dando para um dos corredores da exótica casa de Anna.


Uma banheira embutida na parede e no chão, com três estranhas torneiras de um metal similar ao cobre, mas muito menos fosco e mais atraente aos olhos, derramando suavemente água, enchendo a banheira grande, de cor marmórea. Como não ouvi antes o ruído da água caindo, não sei. Cada torneira parecia fornecer água numa temperatura diferente, e todas as três estavam bem abertas: não era apenas um pingar.


Entramos na água da banheira cheia até mais da metade e meu estado de ânimo não se aclarou muito. Parece que ela se aproveitou disso para desestimular quaisquer perguntas, me excitando novamente com seus toques e mais uma vez fizéssemos sexo, embora desta vez nenhuma alucinação me arrebatasse. Embora com um toque maior de violência – nos arranhamos e nos mordemos bastante, e acabei possuindo-a de quatro, provocando gritos que devem ter se espalhado pelos estranhos corredores e cômodos da casa – quando tudo terminou, eu estava mais calmo, e mais propenso a crer que aquela experiência inusitada mais cedo não passara realmente de uma alucinação, causada com toda certeza pelo meu cansaço acumulado naquele mês de pesadelos, e até pela minha falta de sexo durante esse mesmo período.


Mas nada disso explicava o sangue que sujava a cama, sangue em nossos corpos que se misturou à água e a um pouco de sangue que derramamos durante a segunda sessão de sexo, e que o ralo da banheira sorveu célere e faminto. Quando fiz notar isso a Anna, ela respondeu:


“Não sei explicar isso direito, Virgílio. É como se você tivesse me tornado virgem de novo, meu querido... que nem na música: tocada pela primeira vez, sabe?”


Me deu a impressão de que ela estava escondendo alguma coisa: mas a impressão acabou não incomodando muito, porque Anna sempre parecia estar escondendo alguma coisa, o que me fez admitir que isso fosse apenas parte do comportamento misterioso dela, do charme que ela usava para alternativamente (ou simultaneamente) seduzir e afastar as pessoas ao seu redor. E também de convencê-las daquilo que não parecia muito certo, ou que parecia fora do lugar: quando perguntei por quê meus diagramas estavam espalhados por cima daquele móvel no quarto, e como ela os havia conseguido, ela disse que fui eu mesmo que os trouxe na mochila, e que enquanto eu dormia ao lado dela na cama, ela vasculhou a mochila procurando camisinhas, achando os diagramas; já que havíamos transado sem proteção nenhuma e ela não tinha, de qualquer forma, nada guardado em casa para isso, pois não havia contado com o ardor que havia nos consumido, não havia sido nada planejado.


É verdade que haviam algumas camisinhas na mochila; não sou tão idiota assim. Mas fui idiota o suficiente para aceitar essa explicação, porque não me lembrava absolutamente de ter guardado e levado diagramas que deviam estar expostos lá nas paredes um tanto mofadas da casa de meu pai. Porém, alguma coisa lânguida e firme na voz de Anna me fez não contrariá-la e achar que eu havia, no fim das contas, me atrapalhado, ou tido algum lapso.






Eu disse que passei apenas seis meses morando no apartamento da cidade, e que isso me rendeu uma rotina insuportável de pesadelos, não foi? Pois essa não foi a verdade completa. Os pesadelos frequentes, desde que dormi pela segunda vez naquela noite, ao lado de Anna, desapareceram de maneira inexplicável. Quando voltei para o apartamento no dia seguinte, a noite transcorreu tranquila, embora com uma leve dose de apreensão.


Como qualquer outra pessoa que vive na cidade. Ou quase poderia dizer: como sempre foram as noites dormidas em Grotão.

E por mencionar Grotão, não voltei lá até o final do semestre. Apesar de alguns pedidos estranhos da parte de meu pai, de ir passar o fim de semana com ele (durante o primeiro mês, ele fazia questão de que eu permanecesse na cidade, para não insistir em voltar a Grotão), o meu namoro com Anna me tomava quase todo o tempo desperto fora das aulas. Ou quase isso, já que faltei várias aulas junto com ela, rodando a cidade em sua companhia, ou nos encontrando na casa dela (e nunca no meu apartamento: ela sempre se recusava), desfrutando de várias horas de sexo. Embora não fosse uma mulher ciumenta, Anna com certeza revelou-se possessiva, tomando quase todos os instantes da minha vida, inclusive quando não estava fisicamente por perto.


Além de possessiva, também continuou mantendo sua aura de mistério: o ápice disso foi quando, com cerca de três meses e pouco de namoro, ou seja, depois de mais ou menos quatro meses e meio de minha estadia na cidade, ela passou vários dias sumida, sem telefonar nem abrir a porta da casa (é possível que estivesse lá dentro o tempo todo, nunca me passou uma cópia da chave). Antes que eu chegasse a notificar a polícia, ela reapareceu na universidade, pedindo desculpas pelo sumiço, mas é que havia tido de lidar com um problema de família, e nisso ficou. Não adiantou pedir maiores explicações. Desde esse dia, nossa relação se afrouxou um pouco, mas não o suficiente para diminuir o domínio dela sobre mim – não que ela continuasse me procurando com a mesma insistência, mas eu não deixava de pensar nela e nossos contatos começaram a ser, em sua maioria, iniciados por mim.


Um mês se passou; meu pai aumentou a insistência de seus convites para que eu voltasse a Grotão nos fins de semana, mas as últimas provas se aproximavam, então usei esse fato de desculpa para não ficar sem ver Anna. Essa foi uma das minhas fontes de arrependimento, que mencionei no começo do relato: se tivesse aceito um desses convites, quem sabe meu pai não estivesse agora internado num asilo, num estado de senilidade avançada que antes não demonstrava.


E então, durante a última semana de provas, os convites tornaram-se menos uma exigência do que uma súplica. Meu pai implorava, quase chorando ao telefone, que eu largasse tudo e viesse vê-lo – ele não tinha nem condições de sair da própria casa naquele momento para me encontrar, e eu não consegui entender muito bem a razão, mas sua voz era aflita e ele estava muito confuso e desesperado.






Como uma espécie de vingancinha por aquele sumiço de Anna, não dei a ela aviso nem explicação nenhuma e fui direto, após uma prova numa quarta-feira, da universidade para o subúrbio de Grotão. Cheguei bem tarde, quase onze horas da noite; o céu noturno exibia um brilho cinza-escarlate, e poucas estrelas podiam ser vistas em meio à cobertura de ar sujo. Era incrível, mas parecia que Grotão exibia um estado ainda mais deteriorado: as ruas estavam mais silenciosas do que mesmo aquela hora sombria poderia indicar, o descuido dos jardins era ainda mais nítido, e trepadeiras, líquens e manchas pútridas de poluição lotavam os muros da casa de meu pai. Este ardia em febre, nem sequer pôde me abrir a porta, que lidei com minha própria chave.


Uma terrível e bizarra melancolia me assaltou ao perceber também o desleixo e caos dentro de minha própria casa. Minha tia solteirona parecia sequer existir: apesar de não estar de cama como meu pai, deixava a casa ao deus-dará, o chão quase pegajoso de poeira e umidade, objetos e roupas largados nesse piso imundo. Não tive qualquer ânimo de reclamar, todavia. Não só a febre delirante de meu pai merecia atenção imediata, como notei que a tia tinha retraído-se a uma misantropia ainda maior, nem sequer mais falava, e andava pelos corredores da casa como autômato insensível. Por quê meu pai não mencionara antes esse declínio horrendo, ele nunca me respondeu. Parece que a tendência dele a eufemismos acabara lhe custando a saúde e talvez, a sanidade de sua irmã.


A cada noite que passo andando por esses corredores da casa que um dia foi de meu pai, sozinho, lembrando daquela ocasião fatídica em que voltei a dormir nela, um temor e uma sensação de amargura me assaltam. Mas eu sei que é melhor para ambos estarem longe de Grotão e da praga que ali se instaurou, à minha revelia e por minha culpa.


Depois das providências tomadas com mais urgência, meu pai revelou em sussurros que estava com medo de dormir. Suas olheiras estavam muito piores do que há seis meses atrás; uma palidez lhe tomava o rosto quando ele falava dos pesadelos horríveis que tinha. E em seu relato, o medo foi crescendo em meu próprio peito, porquanto eu reconhecia detalhes muito familiares, mas que não tinha contato há meses.


O pior de tudo é que meu pai precisava de repouso; não adiantava senão confrontá-lo com o que ele mais temia, que era dormir. Pus uma música relaxante em seu quarto, e tentei confortá-lo com uma conversa sem muito propósito, para que ele logo entrasse no sono. Durante essa conversa – praticamente uma canção de ninar – eu via minha tia passar a cada cinco minutos ou isso, andando pelo corredor como se estivesse caçando insetos nas paredes.


Apesar de perturbado e temeroso, meu pai acabou se rendendo ao sono. Havia um colchonete no quarto, e quase considerei seriamente estendê-lo e dormir ali mesmo, do lado da cama de solteiro de meu pai. Mas, ignorando alguma intuição estranha que me vinha, preferi dormir no quarto ao lado, onde havia a cama de casal que meu pai usara com minha mãe enquanto ela esteva viva.


Pedi à tia que fosse dormir, em vez de vagar pela casa, e ela resmungou de volta alguma coisa que não compreendi; deixei de insistir e fui eu mesmo me recolher. Tirei a camisa e dormi com a mesma calça que andei na rua.






Eu tentei abafar aquele medo debaixo do tapete do subconsciente, mas ele voltou para me assombrar... Tão logo adormeci, me vi como há meses, vagando pelas trevas palpáveis, o fervilhar dos tentáculos anômalos lutando contra essas trevas, a inenarrável queda por um túnel penumbroso e espelhado. Só que ao contrário de me ver sozinho na grande planície branca e enevoada de Thangar-Baru, coberto pelo céu esquisitamente malva, para suportar algum novo ordálio noturno, vi uma multidão de vultos a caminhar perdida na infinitude da planície. As figuras cambaleavam em meio à bruma que se erguia ansiosa, como se manifestando uma vontade inominável.


Comecei a também andar entre esses vultos, buscando avidamente uma explicação para aquilo – e entre eles encontrei faces conhecidas, vizinhos que não via há meses, colegas de infância, o carteiro do bairro, os policiais preguiçosos que faziam a ronda, o padeiro envelhecido, todos demonstrando uma mistura incompreensível de apatia e pânico, que poucas palavras tenho para descrever.


Além das feições emaciadas e abatidas, as figuras na névoa de Thangar-Baru também exibiam marcas, cicatrizes, lacerações, membros mutilados, órgãos expostos... quanto mais eu andava em meio a eles, que mal respondiam a meu olhar interrogativo, como se não estivesse ali (eles mal reagiam uns aos outros!), mais o estado físico e mental dos vultos parecia piorar.


Foi quando o pânico me assaltou, pois eu não havia até então encontrado meu pai, nem minha tia. Saí em nervosa e desabalada busca, para só notar outro detalhe apavorante… várias das cicatrizes e marcas nos corpos de meus vizinhos oníricos tinham a forma dos sigilos que eu desenhara nos diagramas de seus sonhos!


Ao perceber isto, soltei um grito insano. A multidão ao meu redor estacou, como se tomada de um frêmito de temor, e vários procederam a fugir desordenadamente… era como se meu berro houvesse de atrair uma fera, ou quem sabe as hordas de monstrengos que habitavam a planície. Mas era tudo um sonho! Tudo um sonho! Uma insensatez me tomou e fui sendo deixado pelos figuras que corriam em desespero, até que uma forma pouco reconhecível, mas pressagiosa, começou a descer, vinda dos céus, como se nadasse em meio a um oceano de cor malva… ao chegar mais perto, notei que bizarras patas quitinosas se mexiam num frenesi inquieto, quatro de cada lado; que a coisa, hedionda, era como um imenso tubarão, com as patas assemelhadas às de um escorpião, e que como de um aracnídeo assim também a cauda terminava num maldoso ferrão. A coisa pousou, vinda do líquido nojento que era o céu malva, e pude perceber que sua cor era quase que a mesma do céu, apenas um pouco mais escura, e daí a dificuldade de distinguir antes o que era aquilo que se contorcia, nadando no espaço acima.


O monstro não teve um instante sequer de imobilidade, enquanto a minha própria paralisia me prendia e enraizava os pés em meio a névoa cruel que baixava, como se satisfeita em revelar cada contorno macabro daquele ser faminto. Porque faminto ele estava: abocanhou dois dos vultos em fuga, sacudindo a cabeça descomunal e mutilando as figuras num banho de sangue, logo absorvido pela bruma inquieta.


As projeções oníricas atacadas afastaram-se, misturando gemidos e lamentos a um uivo incompreensível, como se numa língua ancestral entoado súplicas, e nelas eu reconhecia a voz de meu pai e minha tia… mas nada pude fazer. A criatura virou-se para mim, e eu, preso de medo, sentia como se meu fim já houvesse chegado. Seria devorado por aquela abominação malva que agora predava na planície de Thangar-Baru.


O monstro chegou a poucos metros de mim, mas seu tamanho, maior que uma locomotiva, me dava a ilusão de estar a poucos centímetros de meu rosto – e de qualquer forma, era um sonho, não? Só podia ser um sonho! De repente, uma serenidade mórbida caiu sobre mim, pois instintivamente soube quem era aquele devorador, aquele torturador medonho, feito de sangue e substância malva dos sonhos: ele abriu as mandíbulas já esperadas, arregalando os olhos tomados pelas pupilas de um púrpura de tom escuríssimo, exibindo as fileiras de dentes que se contorciam com o formato e jeito de ferrões venenosos… e dentro de sua goela esfomeada, pulsava aquela língua inchada, hedionda e anormal, que tinha a forma de um rosto humano esculpido na carne viva!


O rugido gutural da coisa agrediu-me de tal forma que fui expulso daquele domínio de  pesadelos, acordando encharcado de suor, na cama do quarto vizinho ao de meu pai.






Saí correndo da casa, horrorizado, depois de checar a segurança de ambos, pai e tia. Acordei um vizinho que me conhecia desde criança, e exigi aos gritos que ele me emprestasse o carro, era uma emergência, eu precisava ir à cidade naquele mesmo instante. Assustado, o homem acabou concordando, e disparei pelas ruas de Grotão em alta velocidade, na direção da estranha casa de Anna.


Fora de mim, tomado de raiva, senti a cólera sumir num instante, ao cruzar a esquina da rua onde aquela casa anormal se ocultava. Um incêndio consumia a casa de dois andares, e ninguém parecia ter chamado os bombeiros, ou pelo menos eles não haviam chegado. Desesperado, liguei para a sede dos bombeiros pelo celular; e depois de muita tentativa (a recepção estava péssima, e a linha caía toda hora) dei o endereço para que viessem socorrer a casa que começava a parecer uma ruína antiga e devastada, mostrando finalmente sua verdadeira aparência.


Cheguei a imaginar se um ato heroico da minha parte, ali naquele momento fatídico, poderia ter salvado Anna, quando um dos bombeiros veio me dizer que o cadáver dela fora encontrado em meio aos destroços – mas o remorso não me doeu muito tempo, porque depois de alguma reserva das autoridades, soube que o incêndio começara do quarto dela, e que fora uma daquelas quase míticas ocorrências de autocombustão espontânea… um polêmico vídeo chegou a vazar, com minha falecida namorada executando estranhos cânticos rituais diante de uma câmera digital conectada à internet, e culminando nas chamas tomando inexplicavelmente seu corpo no ápice do tal rito.


Ao que parece, pelo menos um dos bujões de gás das cozinhas da casa havia sido deixado aberto, e o gás disperso pela casa causou o estrago principal, ao explodir. Uma lenda urbana até se formou sobre o caso, e uma de suas variações mais inócuas conta que o fogo que engolfou a ritualista era verde e tremulava de modo quase caprichoso. A maioria das pessoa que chega a assistir ao vídeo não vê nada disso, porém. Quanto a mim, pelo contrário, sentia que um véu, colocado antes por Anna, fora tirado dos meus olhos. Não demoraria muito para eu descobrir toda a verdade que pressentia.






Hoje, um ano depois desses acontecimentos, me acostumei a uma rotina ingrata, levado por uma senso de dever singular, de responsabilidade pessoal – esses nomes enfeitados que damos à sensação de culpa. Reuni como pude os restos sobreviventes da biblioteca profana de Anna, suas obras de arte enigmáticas, seus tomos secretos de rituais. Houve uma certa dificuldade nesse sentido, mas como ela não tinha parentes vivos reconhecidos, e o advogado da minha própria família era quase tão astuto quanto Anna… Meu pai, sem qualquer necessidade de uma explicação da minha parte, foi para o asilo curtir os últimos anos de sua velhice, numa paz maior do que a que poderia ter em Grotão; e minha tia teve de ser encerrada numa casa de recuperação para doentes mentais.


Sozinho naquela casa, agora cercada de uma série de proteções e alarmes, depois de espreitar pelas ruas do subúrbio, à noite, me refugio no quarto trancado, cujas paredes estão lotadas pelos diagramas oníricos que desenhei… pelos sigilos de invasão de sonhos, elaborados nos papéis do cofre de Anna… pelas notas discretas de jornal que mostram o aumento da criminalidade, dos casos de surto mental, de sonambulismo e de acidentes inexplicáveis em Grotão… e pelos registros chamuscados que não chegam a provar legalmente, mas para os que sabem deduzir, revelam a realização de um aborto durante aquele curto período em que Anna esteve desaparecida… de um embrião de três meses e treze dias… e naquele cubículo isolado, após acender os necessários incensos místicos de cheiro antisséptico, desenho meu círculo de proteção para em seu centro adormecer, todas as noites…


…E invadir Thangar-Baru, a Planície Eterna nas Terras do Sonho, onde multidões de almas adormecidas correm perigo, para subir no farol que construí a duras penas, nas bordas daquele reino onírico, feito a partir da essência de conhecimento e sigilos arcanos, e de suas alturas localizar nas trevas de cor malva a sombra daquela coisa que caço e enfrento e mato, empunhando a faca de aço meteórico forjado no poço do fogo verde: a coisa monstruosa que ressuscita noite após noite, e que escancara a goela antes de morrer, mostrando na deformada língua aquele rosto quase idêntico ao meu, a não ser pelos cabelos ruivos e pelos olhos verde-amarelados, em êxtase imortal, iguais aos de minha falecida namorada, Anna, a feiticeira.




Esta noveleta foi publicada originalmente em http://insanemission.blogspot.com/2010/09/o-farol-na-escuridao.html
E foi revisada e reescrita em alguns pontos em junho de 2012.

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