domingo, 19 de maio de 2013

ACESSO


Arthur Ferreira Jr.'.




Ela se cansou dos garotos de sua cidade. Novo Portal havia se tornado monótona demais para o seu gosto. Passava cada vez mais tempo na internet. Havia se cansado dos garotos de seu próprio país. Olhava para a tela do computador e só lia besteiras, então, quem sabe procurando em chats com estrangeiros?
Muita gente falando em péssimo inglês.
Oh, um egípcio, ela pensou, que interessante, como será a vida dele nesse país que acabou de sair de uma revolução? E a internet foi tão importante nesse acontecimento, e a coisa era tão recente, que era uma ótima maneira de puxar conversa com o gringo ... tekeli@li era o nick que o identificava na tela.
Mas que homem lindo, ela pensou. Talvez a webcam dele não fosse de muita qualidade, estava meio na penumbra, também... mas podia enxergar razoavelmente bem aquele homem de pele bastante morena, quase negra, mas que não pertencia a um homem negro de verdade, as feições dele eram diferentes, lábios mais finos, nariz bem aquilino – bem, ela não havia estudado isso, mas deveria ser um genuíno hamita dos que eram citados nos livros de história!
Isto a excitou muito.
Ela começou a digitar num inglês ruim, e ele também respondia numa linguagem um tanto quanto truncada mas com frases bastante charmosas – em pouco tempo a garota despejava seus segredos, sua vida, suas fantasias sexuais, sobre o estrangeiro, e ele parecia muito curioso, muito ávido de saber sobre ela. Sua voz era um tanto melíflua e seu sotaque bastante estranho, exótico, fascinante, algo que a lembrava de épocas antigas que ela nunca vira.
Então, num acordo tácito, a conversa mudou para uma espécie de sexo virtual. Ela digitava com sofreguidão a descrição dos atos que queria cometer sobre ele, beijar os lábios do egípcio era o mínimo que queria fazer. A voz do estrangeiro se propagava no quarto da garota, e ela não notou que o ar-condicionado foi parando.
Estava sozinha em casa, não ligava para nada, só para seu lindo Faraó Negro.
Gemia e ronronava para ele, que começou a grunhir, entrando no que ela achou que era um orgasmo – mas já?
E ela, também, muito excitada, aproveitou a exibição do outro para brincar consigo mesma... até que foi interrompida. Uma massa pegajosa cobria a tela da webcam do estrangeiro do outro lado do mundo, mas não era a substância que ela talvez esperasse.
Era um protoplasma fervilhante, amorfo, vivo, que se mexia.
O rosto do Faraó se retorcia, derretendo... e ela não conteve um grito de pavor.
A tela começou a mostrar dezenas de imagens, dividindo a tela, imagens que ela nunca antes sonhara em presenciar: visões de 150 milhões de anos atrás, uma rebelião primordial que assassinou vários da antiga raça dominante do planeta, seres alados, com cinco membros em volta do corpo, derrotados por formas mutantes que se erguiam dos mares.
A divisão das pequenas telas na sua grande tela de computador não obedecia a uma simetria precisa, mais que isso, não obedecia à própria geometria que ela normalmente perceberia no mundo normal. As imagens pareciam em 3D, muito embora a tela não fosse tão avançada assim. Mais do que 3D, algo além. E feriam a retina, a mente, da garota tão curiosa.
As imagens avançaram pelas eras, e a garota continuava a gritar, suas mãos crispadas em volta do teclado, que ela erguia próximo ao rosto, tirando-o da mesa e quase arrancando o fio que o prendia ao computador. Imagens dos milhões e milhares de anos se passando, até que se focaram nas margens do Nilo, onde um shoggoth vadeava as águas – o povo mutante, amorfo, criado como servidor há milhões de anos – presenciando a chegada de um homem (seria mesmo um homem?) de rosto tão igual ao exótico estrangeiro. Diante dele, os felás se ajoelhavam.
Depois dessa parada, os anos se transcorreram com imensa rapidez nas telas múltiplas, dividindo-se, como por fissão, sobre a superfície da grande tela. A garota não conseguia reagir, não conseguia fugir daquele espetáculo mutável, uma arte visual viva que se contorcia.
Outros equipamentos se desligam pela casa da garota.
A casa toda fica às escuras, e só o computador continua ligado, mostrando aquelas imagens aceleradas, hipnóticas, reveladoras; e num dado momento elas mostram uma coisa assumindo a forma humana, imitando seres humanos e também a uma entidade que os cultos chamavam de Caos Rastejante ... um caos vivo como o shoggoth, assumindo formas inúmeras, embora muitas humanoides.
Em meio àquela confusão, uma voz mesmérica dançava nos ouvidos da garota, "Aquele de Vida Prolongada te revela, somos todos Antigos, deuses nos abismos das dimensões superiores, minha criança... pela Terra, vários seres que sou eu mesmo se deslocam, e por todo o universo. Mas você não sou eu, nem ele que se precipita sobre ti. São Nyarlathotep e Yhoundeh, ele e você, porém mal sabem disso. Ele anseia pelo Caos e por você."
E então o barulho de travamento da máquina, como se o HD estivesse com problemas sérios; mas as imagens continuavam céleres... até que uma horrenda massa protoplásmica escorreu dos circuitos da máquina, quebrando suas placas internas, mas as imagens continuavam se repetindo no monitor. E a voz falou antes de se calar, "Estejam sozinhos." O bairro de Mirantes do Grotão obedeceu com um blecaute, e logo em seguida, toda a cidade de Novo Portal.
A garota gritou, chocada ao limite da loucura, e a enorme massa borbulhou e despejou seu conteúdo revoltante sobre todo o quarto... cobrindo o corpo da menina, que gritava desesperada.
A substância viva contorceu-se mais uma vez, e parou... inerte. Em meio àquela protoplasma antes cheio de vida, exaurido pela inserção de filamentos tão mínimos pela rede mundial de computadores, pela chegada ao outro lado, tão dolorosa aos órgãos criados espontaneamente... o cadáver de uma garota, morta, não se sabe de medo, asfixia ou de pura revelação.






Versão revisada e levemente alterada de conto publicado anteriormente com o nome de Meu Querido Shoggoth

sábado, 4 de maio de 2013

INTERVENÇÃO DE YUGGOTH

Arthur Ferreira Jr.'.





I’ll take your brain to another dimension
Pay close attention
I'm gonna send him to outta space
To find another race

Prodigy, Out of space



“SAIA DA MINHA CASA. VOCÊ NÃO me respeita!” Era uma das piores coisas que eu podia ouvir, porque eu não tinha mais para onde ir. E ela tinha razão: se aquele material fosse achado – e confiscado – seríamos os dois presos, eu e ela, minha mulher. Mas mesmo assim, eu estava com a razão. Era humilhante a situação, não podíamos continuar.

    Não me refiro ao nosso casamento e àquele espetáculo que ela dava na frente dos vizinhos. Para o próprio bem dela, ela não mencionava qual era o desrespeito, parecendo uma briga normal de um casal, coisa natural depois de dois anos de união. Me refiro aos alienígenas – eu nunca havia visto um pessoalmente, mas era humilhante a situação do Planeta Terra: ou Colônia Yuggoth-3, como descreviam os documentos secretos.

    Todos os humanos – ou a maioria dos humanos, incluindo minha esposa – enxergavam os alienígenas como os Grandes Benfeitores. Afinal de contas, não tínhamos mais doenças, as guerras eram uma questão regulamentada por um governo mundial, pouco a pouco o problema da fome estava sendo resolvido… os Grandes Benfeitores se diziam representantes de uma Ordem Universal e sua intervenção seria benéfica, impedindo a autodestruição da humanidade; e o governo mundial da Terra agora fazia parte dessa Grande Ordem Universal.

    Tudo muito bonito, e não era nada bonito ser despejado, mas a casa era dela. Os Benfeitores nada havia dito sobre propriedade comunal – como se delirava que poderia ser uma utopia – nem haviam feito nada para diminuir desigualdades sociais e econômicas. A violência local também continuava bastante comum.

    E era com essa violência que eu precisava me preocupar, vagando pelas ruas do bairro, com aquela mochila imensa portando os últimos pertences que me restaram. Eu não podia entrar com uma ação para reaver eletrodomésticos deixados em casa, porque isso chamaria a atenção para mim. Depois que M. L. fora baleado, não havia mais ninguém da Conspiração em meu alcance imediato, ninguém a quem eu pudesse pedir abrigo.

    Pelas ruas fui andando, tentando me recuperar da humilhação na porta do prédio. As pessoas observavam sem intervir, mas eu sabia que por dentro se compraziam, era mais um escândalo, mais um espetáculo. E espetáculos chamam muita a atenção, eu precisava sair depressa do lugar que não podia mais chamar de lar.

    Acabei dando numa área que não era um dos piores bairros, mas também não era como o bairro de classe média alta onde eu vivia. Estava mais longe ainda do condomínio de luxo em que morava, um ano e meio antes.

    Ruas não muito cheias. Mas quem passava na rua parecia me olhar fundo como se eu fosse um intruso. No meu desespero de passar despercebido, talvez chamasse ainda mais atenção.

    “Psssst!” sussurrou uma voz. “Aqui, irmão.”



O HOMEM FAZIA UM SINAL COM A MÃO – o pulso e os dedos se mexiam do jeito característico de um iniciado da Conspiração. Só que aquele era um mendigo: barba desgrenhada, um olhar levemente desfocado, roupas um tanto escuras, de tão sujas.

    “Vamos,” insistiu o homem. Ele apontava para uma padaria que estava quase fechando. A impressão que dava a qualquer um que nos olhasse de longe era que o mendigo estava pedindo que lhe pagasse uma comida qualquer. Um sujeito foi passando pela calçada, olhando desconfiado. “Estou amarelo de fome,” implorou o mendigo, de repente.

    Agora não haviam mais dúvidas, era uma das senhas da Conspiração. Fiz menção de me apiedar do (imagino que falso) mendigo, e entrei com ele na padaria.

    Pouco havia mudado, em termos de tecnologia, nos vinte e tantos anos desde que vários líderes mundiais entraram em súbito acordo e formaram a Sinarquia, o governo mundial que liderava em nome dos alienígenas. E estranhamente, havia tido pouca resistência, exceto nos cantos mais sórdidos do planeta, sendo que esses tinham, também, pouca condição efetiva de resistir. Parte disso se deve tanto a pronunciamentos de líderes religiosos quanto de cientistas acreditados pelo público. Os religiosos mostravam a benevolência dos extraterrestres, aludindo a aparições nos mitos de suas próprias crenças, como se estas sempre houvessem sido intervenções dos Benfeitores – e esse discurso vinha tanto de cristãos quanto muçulmanos, bem como judeus, budistas e várias religiões majoritárias do mundo; faço questão de dizer majoritárias, porque os extraterrestres não se importaram em plantar seus agentes, pelo menos não aqueles que teriam visibilidade na mídia, em grupos religiosos de pouca importância.

    A mesma coisa se deu com os cientistas: aqueles com pouco respeito perante a mídia, ou o grande público, ou sem laços com os governos, não foram os que mostraram inequivocamente que a humanidade estava no caminho certo da autodestruição, se não aceitasse a ajuda dos Benfeitores. As duas maiores questões apontadas por esses cientistas eram a ecologia e a saúde. O mundo estava aterrorizado com novas epidemias que pipocavam a cada poucos meses, e com o surgimento de novas doenças que eram incuráveis ou que matavam em pouco tempo. O mesmo terror indisfarçável, embora menos discutido, vinha do alarde das condições precárias da vida na Terra. Só um governo mundial, articulado de modo a impedir as emissões de carbono na atmosfera, a poluição indiscriminada nos mares, a dispersão do lixo pelo mundo, poderia salvar a Terra; só que ninguém estava disposto a dar o primeiro passo.

    Pois bem, os alienígenas estavam ali para forçar esse primeiro passo, e de quebra, poderiam paulatinamente remover a mácula que a humanidade deixara no planeta nos últimos séculos, reverter o estrago feito no meio ambiente. Se os extraterrestres se ofereciam para sanar a Terra, também – como um bônus, uma demonstração de boa vontade – sanariam os corpos da raça dominante do planeta, nós, humanos. E assim foi que praticamente todas as doenças foram erradicadas, embora ainda dependamos das vacinas dos Benfeitores.

    Por isso tudo, aquela padaria se parecia bastante com uma padaria de vinte anos atrás, se não fosse o fato de que ela era paranoicamente higienizada (de quando em quando, uma nova doença surgia e várias pessoas morriam, mas era rapidamente debelada pela tecnologia médica dos alienígenas; esses surtos um tanto periódicos chamavam muita atenção e criavam o hábito de prevenção acirrada contra infecções) e que não havia ninguém tossindo, nem mesmo pigarreando, como acontecia muito no friozinho da manhã.

    Tudo muito límpido, e me fazia perguntar porque, afinal, eu me opunha aos Benfeitores. Acontece que eu sabia coisas além das que o grande público sabia; coisas que a Conspiração, a Irmandade do Signo Amarelo, sabia, por combater nas sombras os alienígenas.

    Eu fazia parte da Conspiração.



O PADEIRO E A ATENDENTE LEVANTARAM OS OLHOS de modo insinuante ao me ver entrar com o mendigo, mas não disseram nada... talvez porque um outro sujeito entrou na padaria, ficou olhando as mercadorias e levou bom uns dez minutos nesse processo lento. Talvez estivesse me espionando.

    Por fim, saiu meio apressado, quase tropeçando na entrada, sem comprar coisa nenhuma. Enquanto isso não aconteceu, o mendigo comia devagarinho o sanduíche que comprei para ele. Não demorou nem quinze segundos do outro sujeito ter saído, o mendigo agradeceu muito e saiu também quase correndo.

    Fiquei atarantado, mas o que seria aquilo? Ele não era da Irmandade?

    A atendente então virou-se para mim e disse, “Você viu o Signo Amarelo?”

    Aquela era a senha mais imprudente e óbvia! Não tive dúvidas de aquilo era uma mera fachada da Irmandade, respondi de modo a demonstrar meu posto na célula que fora destruída, ao que ela sinalizou para uma porta nos fundos da padaria e pediu que a seguisse.

    Descemos três lances de escada até chegar a uma espécie de porão, onde haviam mais duas pessoas, um homem e uma mulher. O padeiro de olhar insinuante ficou lá em cima, provavelmente vigiando e continuando a vender normalmente suas mercadorias. Não havia muita coisa no tal porão exceto um monte de caixas, um banquinho e uma espécie de maquinário num canto úmido e escuro. Fizemos os cumprimentos de identificação e começamos a partilha.

    “Kristian Germano, da Sinarquia, desapareceu há dois dias,” informou o homem vestido de amarelo e vermelho. Aquela frase me trouxe calafrios: Germano era o homem que havia me substituído no Gabinete, depois que uma discussão me deixou sem emprego e com vários bens confiscados devido a uma denúncia forjada. Então aquele seria o meu destino se eu não tivesse saído de lá? “Provavelmente,” continuou o homem, arregalando um pouco os olhos, “Germano recebeu o Convite dos Alienígenas. Os resultados de suas avaliações eram excepcionais, e seu cérebro renderia uma ótima análise para os mi-go.”

    Era esta uma das razões pela qual a Irmandade existia: os mi-go (assim eram denominados os Alienígenas no Dossiê Wilmarth, um dos mais importantes documentos à disposição da Conspiração, junto com tomos antigos como os Manuscritos Pnakóticos, a Teratosofia e Arte Divina de Klarkash-Ton) instigavam uma elite entre os humanos, que recebia alterações e melhorias em seus corpos, muito além da imunidade concedida a toda a raça humana. A maioria dessas mutações era sutil, mas poderia produzir benefícios como resistência excepcional, sentidos aguçadíssimos, a capacidade de contorcer-se, mudança lenta e voluntária da aparência, e coisas mais mundanas como potência sexual acima do normal. Dessa elite, chamada de Sinarquia, alguns eram convidados para Ascender – transcender o próprio corpo. A Irmandade do Signo Amarelo sabia perfeitamente o que isso queria dizer: ter o cérebro removido através dos prodígios cirúrgicos dos Fungos de Yuggoth, e preservado para todo o sempre num cilindro cheio de líquido nutriente.

    O cérebro poderia então sobreviver às viagens pelos túneis de luz dos mi-go… às quais um humano normal não resistiria. Os Fungos vinham não de um planeta na borda do sistema solar – aquilo era só outra colônia habitada – mas de dimensões além da membrana do nosso universo. Lá não poderíamos sobreviver; exceto passando pela cirurgia e preservação como um... cérebro sem corpo. Como dizia o Dossiê Wilmarth, 'todas as transições são indolores e há muito que desfrutar de um estado inteiramente mecanizado de sensações. Quando os eletrodos são desligados, a pessoa apenas mergulha num sono cheio de sonhos bastante vívidos e fantásticos'.

    Acabei citando esse trecho em voz alta. A mulher de amarelo e azul virou-se para mim, e comentou: “Era isso que as criaturas tentaram impingir a Wilmarth, mas não conseguiram; a Ascensão só conduz a uma escravidão, sofrendo de audição e visão deficientes através de instrumentos, perda dos centros hormonais e entrada num estado de loucura além das emoções normais... sem contar que sabemos que também o Dossiê registra que 'os seres que ali vivem emitirão correntes mentais em nossa direção e provocarão a descoberta do planeta...' Foi mais do que isso que aconteceu, toda a humanidade está dominada por essa... egrégora, para usar um termo da Teratosofia; uma paz amarga, ajudada pelas emanações mentais dos mi-go e assegurada pela conivência da Sinarquia; e os Ascensos são os mais suscetíveis a essas emanações, tenha certeza.

    “Então você foi expulso de casa, Irmão?” interrompeu aquela que se passava pela atendente, com o mesmo olhar insinuante e quase vidrado do falso padeiro lá em cima. “Temos que dar um jeito em sua mulher, sua ex-mulher, antes que ela...” de repente um estrondo na porta fez todos pararem e olharem para cima; a porta havia sido reduzida a destroços e lascas, e um homem empunhando uma pistola saltava pela escada. Não! Havíamos sido descobertos! E tão cedo!

    O intruso aterrissou, num baque tremendo, no chão sujo do porão, de tal forma que teria quebrado as pernas, se eu não tivesse certeza de que aquelas pernas haviam sofrido alteração alienígena, e gritou: “MORTE AOS CONSPIRADORES!”

    Numa velocidade alarmante, antes que os outros Irmãos pudessem reagir, o exterminador atirou uma rápida sucessão de tiros, atingindo no centro exato da testa de cada um deles... o sangue esguichava como se a gravidade fosse mais leve, como se o meu horror e a iminência de minha própria morte houvesse suspenso parte das leis da física! Menos de três segundos e estava tudo acabado, minhas roupas manchadas de sangue humano.

    Pensei que o exterminador fosse apontar a arma para mim e terminar tudo em grande estilo, já que não havia me incluído naquela exibição dramática de domínio da arma... mas, não.

    “Por quê... eu já não estou morto?” perguntei, ofegante, esmagado contra o chão, nas raias do pânico.

    Era estranho. O homem se parecia comigo – ou uma versão minha dez anos mais jovem, ou meu filho, ou... Ele continuou calado, e jogou a arma no chão, só aí dizendo: “Não, não posso te matar, é impossível.”

    “Mas por quê não? Eu sou um conspirador!”

    A figura respirou fundo, me olhou direto e fundo nos olhos e disse, num tom de voz estranho, como se fosse... um zumbido... “Pare de conspirar contra si mesmo.”

    Zumbido? O Dossiê Wilmarth dizia que os Alienígenas recebiam implantes para falar as línguas humanas, como se fossem zumbidos de abelhas do além... Mas a voz do assassino era um zumbido distante, como se ele não estivesse ali... e aquele homem não parecia um Fungo de Yuggoth, aquela mescla de crustáceo e fungo cheio de antenas e tentáculos na cabeça, aquilo não era uma abominação invasora da Terra, aquilo era um homem como eu!

    De repente tudo me ficou claro – a própria citação do Dossiê explicava aquilo! Mas... não era possível... tudo começou a ficar borrado, a sala foi se esvaindo como uma pintura descascando, minhas emoções – o próprio horror e pânico – iam morrendo, e o homem balançava a cabeça, ou o borrão que antes era o assassino diante de mim... 'Quando os eletrodos são desligados, a pessoa apenas mergulha num sono cheio de sonhos bastante vívidos e fantásticos', não havia a menor dúvida, e agora eu sabia, Kristian Germano era eu mesmo, e nunca um substituto!



NUM LABORATÓRIO SUBTERRÂNEO de uma das bases terráqueas dos mi-go, impiedosos controles de sensação foram ajustados, diagnósticos rodaram nos intricados e repugnantes computadores orgânicos acoplados ao solo, e um zumbido se fez ouvir, forte como nunca, sempre aquele mesmo zumbido:

    “...infestação mental do Signo Amarelo erradicada, espécime no cilindro <KG-347> saiu do coma memético induzido pelo vírus, limpeza completa, das fontes da noite aos abismos do espaço, e dos abismos do espaço às fontes da noite... louvado seja Nyarlathotep, o Grande Mensageiro.”









INTERVENÇÃO DE YUGGOTH foi escrito em fevereiro de 2011 e reescrito em julho de 2012 para a coletânea SIMETRIA MACABRA: CRÔNICAS DO MYTHOS DE CTHULHU.