Arthur Ferreira Jr.'.
Ela se cansou dos garotos de sua cidade. Novo Portal havia se tornado
monótona demais para o seu gosto. Passava cada vez mais tempo na
internet. Havia se cansado dos garotos de seu próprio país. Olhava
para a tela do computador e só lia besteiras, então, quem sabe
procurando em chats com estrangeiros?
Muita gente falando em péssimo inglês.
Oh, um egípcio, ela pensou, que interessante, como será a vida
dele nesse país que acabou de sair de uma revolução? E a internet
foi tão importante nesse acontecimento, e a coisa era tão recente,
que era uma ótima maneira de puxar conversa com o gringo ...
tekeli@li era o nick que o identificava na tela.
Mas que homem lindo, ela pensou. Talvez a webcam dele não fosse de
muita qualidade, estava meio na penumbra, também... mas podia
enxergar razoavelmente bem aquele homem de pele bastante morena,
quase negra, mas que não pertencia a um homem negro de verdade, as
feições dele eram diferentes, lábios mais finos, nariz bem
aquilino – bem, ela não havia estudado isso, mas deveria ser um
genuíno hamita dos que eram citados nos livros de história!
Isto a excitou muito.
Ela começou a digitar num inglês ruim, e ele também respondia
numa linguagem um tanto quanto truncada mas com frases bastante
charmosas – em pouco tempo a garota despejava seus segredos, sua
vida, suas fantasias sexuais, sobre o estrangeiro, e ele parecia
muito curioso, muito ávido de saber sobre ela. Sua voz era um tanto
melíflua e seu sotaque bastante estranho, exótico, fascinante, algo
que a lembrava de épocas antigas que ela nunca vira.
Então, num acordo tácito, a conversa mudou para uma espécie de
sexo virtual. Ela digitava com sofreguidão a descrição dos atos
que queria cometer sobre ele, beijar os lábios do egípcio era o
mínimo que queria fazer. A voz do estrangeiro se propagava no quarto
da garota, e ela não notou que o ar-condicionado foi parando.
Estava sozinha em casa, não ligava para nada, só para seu lindo
Faraó Negro.
Gemia e ronronava para ele, que começou a grunhir, entrando no que
ela achou que era um orgasmo – mas já?
E ela, também, muito excitada, aproveitou a exibição do outro
para brincar consigo mesma... até que foi interrompida. Uma massa
pegajosa cobria a tela da webcam do estrangeiro do outro lado do
mundo, mas não era a substância que ela talvez esperasse.
Era um protoplasma fervilhante, amorfo, vivo, que se mexia.
O rosto do Faraó se retorcia, derretendo... e ela não conteve um
grito de pavor.
A tela começou a mostrar dezenas de imagens, dividindo a tela,
imagens que ela nunca antes sonhara em presenciar: visões de 150
milhões de anos atrás, uma rebelião primordial que assassinou
vários da antiga raça dominante do planeta, seres alados, com cinco
membros em volta do corpo, derrotados por formas mutantes que se
erguiam dos mares.
A divisão das pequenas telas na sua grande tela de computador não
obedecia a uma simetria precisa, mais que isso, não obedecia à
própria geometria que ela normalmente perceberia no mundo normal. As
imagens pareciam em 3D, muito embora a tela não fosse tão avançada
assim. Mais do que 3D, algo além. E feriam a retina, a mente, da
garota tão curiosa.
As imagens avançaram pelas eras, e a garota continuava a gritar,
suas mãos crispadas em volta do teclado, que ela erguia próximo ao
rosto, tirando-o da mesa e quase arrancando o fio que o prendia ao
computador. Imagens dos milhões e milhares de anos se passando, até
que se focaram nas margens do Nilo, onde um shoggoth vadeava as águas
– o povo mutante, amorfo, criado como servidor há milhões de anos
– presenciando a chegada de um homem (seria mesmo um homem?) de
rosto tão igual ao exótico estrangeiro. Diante dele, os felás se
ajoelhavam.
Depois dessa parada, os anos se transcorreram com imensa rapidez
nas telas múltiplas, dividindo-se, como por fissão, sobre a
superfície da grande tela. A garota não conseguia reagir, não
conseguia fugir daquele espetáculo mutável, uma arte visual viva
que se contorcia.
Outros equipamentos se desligam pela casa da garota.
A casa toda fica às escuras, e só o computador continua ligado,
mostrando aquelas imagens aceleradas, hipnóticas, reveladoras; e num
dado momento elas mostram uma coisa assumindo a forma humana,
imitando seres humanos e também a uma entidade que os cultos
chamavam de Caos Rastejante ... um caos vivo como o shoggoth,
assumindo formas inúmeras, embora muitas humanoides.
Em meio àquela confusão, uma voz mesmérica dançava nos ouvidos
da garota, "Aquele de Vida Prolongada te revela, somos todos
Antigos, deuses nos abismos das dimensões superiores, minha
criança... pela Terra, vários seres que sou eu mesmo se deslocam, e
por todo o universo. Mas você não sou eu, nem ele que se precipita
sobre ti. São Nyarlathotep e Yhoundeh, ele e você, porém mal sabem
disso. Ele anseia pelo Caos e por você."
E então o barulho de travamento da máquina, como se o HD
estivesse com problemas sérios; mas as imagens continuavam
céleres... até que uma horrenda massa protoplásmica escorreu dos
circuitos da máquina, quebrando suas placas internas, mas as imagens
continuavam se repetindo no monitor. E a voz falou antes de se calar,
"Estejam sozinhos." O bairro de Mirantes do Grotão
obedeceu com um blecaute, e logo em seguida, toda a cidade de Novo
Portal.
A garota gritou, chocada ao limite da loucura, e a enorme massa
borbulhou e despejou seu conteúdo revoltante sobre todo o quarto...
cobrindo o corpo da menina, que gritava desesperada.
A substância viva contorceu-se mais uma vez, e parou... inerte. Em
meio àquela protoplasma antes cheio de vida, exaurido pela inserção
de filamentos tão mínimos pela rede mundial de computadores, pela
chegada ao outro lado, tão dolorosa aos órgãos criados
espontaneamente... o cadáver de uma garota, morta, não se sabe de
medo, asfixia ou de pura revelação.
Versão revisada e levemente alterada de conto publicado
anteriormente com o nome de Meu Querido Shoggoth
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