quarta-feira, 18 de julho de 2012

O FAROL NA ESCURIDÃO


Arthur Ferreira Jr .'.





As sombras da noite sem dúvida despertam a imaginação humana, e existem aqueles que, mesmo afirmando serem crescidos, ainda sentem calafrios diante do escuro da noite. E se há uma noite que todos tememos, pois ela é ainda mais inescapável que o ciclo alternante da noite mundana, é a noite da mente – o desconhecido, o inconsciente, os sonhos rapidamente esquecidos durante o café da manhã, mas que não deixam de distorcer o ânimo dos sonhadores, bem de leve, durante o resto do não tão abençoado dia.


Dessa noite da mente, fugimos toda vez que adormecemos, ficando às margens de seu abismo estranhamente familiar. Nossos sonhos se dão nessa zona liminar, nessa região de obscuridade psíquica. Às vezes sonhos iluminados reluzem em nossa mente, trazendo ideias, epifanias, alívios – e são esses sonhos, essas tochas solitárias em meio à zona uivante que cerca o abismo da noite da mente, que nos impelem a cada período de vinte e quatro horas a buscar o sono, quando um atordoamento insidioso teima – e consegue – nos dominar.


Somos como mariposas atraídas por esses fachos de luz na zona limítrofe – centelhas que nos revigoram para o dia seguinte, mas que, infelizmente, também acabam nos expondo aos perigos do abismo além do sonhar. Existem sendas e caminhos, nessa zona pouco compreendida, que desembocam como rios do além, no caos oceânico desse abismo.


E muito embora o medo desse abismo esteja sempre presente e oculto em nossa espécie humana, existem aqueles que sentem um fascínio quase mórbido pela obscuridade que se move dentro de nós... da mesma forma que o restante da humanidade é atraída pelos fogos-fátuos de inspiração que brilham nas zonas oníricas mais próximas da consciência.


Eu sou um desses fascinados, e o preço que pago por isso é grande.






Meu nome, antes que perguntem, é Virgílio de Almeida. Nome vulgar, admito, mas acredito que eu mesmo esteja longe de ser vulgar, dadas as coisas que instintivamente sei e que outros se esforçam anos para descobrir.


Nasci numa cidade-satélite de uma metrópole bem maior. Embora oficialmente pertencente ao município da grande cidade, quase um subúrbio, um parasita urbano inchado, de casinhas coladas umas às outras, Grotão era de caráter bastante distinto da urbe maior a qual estava agarrada. Soturna, de ruas e casas manchadas pela poluição de uma refinaria próxima, cheia de jardins malcuidados, árvores tomadas de trepadeiras, chácaras em mau estado e muros cobertos de hera – a região era uma verdadeira erva daninha, se comparada à vivacidade da quase capital.


Irônico que me refira assim nesses termos à minha terra natal, quando na verdade me sinto esquisitamente confortável dentro dela. Para ser bem preciso, uma fobia mal explicada me assola quando saio de Grotão, sendo que um semestre de estudos fora de seus limites, há cerca de um ano e pouco, me custou uma rotina quase insuportável de pesadelos, nervosismo e ansiedade beirando a paranoia.


Pode-se dizer então que, da mesma forma que Grotão drena a vida de Novo Portal, cidade maior à qual é pegada, eu dependo da estranha vidinha de Grotão, especialmente sua vida noturna – em mais de um sentido.


Carente de bares e botequins onde jogar conversa fora, os habitantes de Grotão desenvolveram o hábito e costume de fazer serões nos jardins de suas casas, muitas vezes jogando cartas e bebericando vinhos. Nesses serões escutei muitas histórias estranhas, e com o passar do tempo, concatenando fatos a epifanias internas, observações a reflexões, pude notar um grande padrão que se impõe nas conversas noturnas de Grotão – padrão feito de sonhos. Era costume comentar que sonhos haviam tido na noite anterior, ou mesmo durante a sesta (parece que o número de pessoas que podiam se dar ao luxo da sesta, bem como o número das que trabalham em casa, é desproporcionalmente alto em Grotão). Ora, passar a adolescência ouvindo relatos dos sonhos alheios me chamou imensamente a atenção – apesar dos meus conterrâneos, chega a ser estranho, na verdade darem pouquíssima importância aos sonhos. Para eles, sonhos eram moeda banal de troca, de conversação quase fática, que trocavam tão inconscientemente quanto todos nós pomos num reflexo a mão no bolso quando compramos algo.


Essa atenção era fruto de uma sensibilidade aguçada a padrões e conceitos. Meu pai, homem de idade já avançada quando nasci, era um matemático dedicado e, embora não tivesse exercido profissionalmente, também um linguista – imagino que se ele próprio tivesse nascido algumas décadas depois, com certeza teria se dado muito bem no campo da linguagem de computadores. Tendo me criado praticamente sozinho após a prematura morte de minha mãe, vinte e três anos mais nova que ele, essa figura paterna que há cerca de seis meses foi voluntariamente morar num asilo geriátrico exerceu grande influência sobre mim, com certeza bem mais que minha mãe morta, ou minha tia solteirona que morava conosco e mal conseguia conversar direito.


Meu velho pai tinha, como vários de sua rua, o costume de frequentar os serões de Grotão, especialmente quando me tornei adolescente e ele passou a me levar junto. Daí desenvolvi o hábito de desenhar os diagramas oníricos: anotava os fragmentos de sonhos contados nas reuniões, marcava-os com uma notação numérica, e usava os números como referenciais em grandes esquemas que esboçava em cartolina. Os números eram ligados por setas e vetores e esses diagramas eram expostos nas paredes de um quarto vago da casa de meu pai, onde moro até hoje. Posso dizer que praticamente substituíram a necessidade de papel de parede ali – é provável que haja mofo debaixo dos esquemas presos à parede: às vezes em dias quentes um estranho odor domina o aposento, e Grotão é um lugar muito úmido – mas não consigo reunir disposição suficiente para retirar tudo e fazer uma limpeza.


E de onde vinham as setas e vetores que ligavam os sonhos de tantos moradores do subúrbio de Grotão? A princípio, a intuição e uma análise talvez grosseira me guiavam. Pequenos detalhes recebiam às vezes um peso maior do que similaridades óbvias. Com o tempo tornou-se complicado representar a diferença nos relacionamentos entre os diferentes sonhos, e passei a usar números para representar esse peso, nas flechas que ligavam os sonhos anotados nos cadernos guardados no mesmo aposento de cheiro mofado. Logo depois de ter experimentado isso, uma sensação de inadequação estética e de erro me assaltou e removi toda a notação numérica dos sonhos em si, substituindo-a por símbolos. Cada sonho agora recebia um sigilo desenhado tanto no diagrama quanto na anotação de caderno. Era aí que minha estranha intuição, que minha tia dizia ter sido herdada de minha mãe, agia com mais força: a escolha dos sigilos mal tocava minha mente consciente, era quase escrita automática – uma única relida na anotação, e o sigilo era imediatamente desenhado em seu cabeçalho e logo depois, com uma rapidez frenética, no diagrama onírico a ser exposto na parede.


Os poucos de fora da família que chegaram a contemplar as paredes cheias de esquemas e símbolos geralmente deixavam-se arrastar por um longo fascínio e murmuravam curtos comentários às vezes sem nexo. Nenhum desses – quase todos colegas de escola – fazia parte dos grupos que organizavam os serões, embora eu tenha quase certeza de que notícia dos diagramas fora cair nos ouvidos de alguns participantes, que pararam de descrever sonhos em minha presença. Em geral, contudo, a rotina da troca de relatos continuava inalterada, fornecendo dados e dados que geravam mapas e mais mapas de sonhos e visões noturnas.


Essas mandalas me tomavam mais tempo do que era conveniente, e embora meu pai de início enxergasse tudo com uma certa curiosidade e assombro, começou depois a fazer comentários sobre a inutilidade daquilo, sobre o caráter fantasioso da notação numérica e simbólica, culminando com sua ideia de me fazer morar fora, na cidade grande, para estudar em uma de suas universidades com mais facilidade (às vezes a viagem entre Grotão e Novo Portal levava quase três horas, de ônibus). Essa mudança de atitude coincidiu com o gradual diminuição da frequência no comparecimento às reuniões de jardim. Cheguei a argumentar que um carro resolveria todos os problemas de transporte, e que eu era disciplinado o suficiente para acordar cedo todo dia, mas meu pai não quis nem ouvir falar disso. Ao contrário de vários de meus colegas, que receberam de presente um automóvel ao entrar na faculdade, eu tinha um pai que dificilmente cogitaria em gastar parte de suas economias que ele guardava para meu futuro (e sim, para numa casa na cidade) com um carro. E agora, minha mania, dependente dos serões de nossos vizinhos, e no fim das contas dependente da própria Grotão, com certeza seria interrompida se ele não me desse mesmo carro nenhum – pronto, estava decidido.


O pai pagaria as custas do aluguel de um apartamento enquanto fosse preciso. Bom, já devo ter mencionado que a coisa toda não durou mais de seis meses, não foi? Mas é preciso tanto agradecer quanto me arrepender desses seis meses e da teimosia do velho.


O que deveriam ter sido quatro anos, no mínimo, de permanência na cidade grande, me esperavam. Um pequeno apartamento quarto-e-sala no antigo centro de Novo Portal, conseguido por intermédio de um dos raros amigos de minha tia, seria minha base sólida durante esses anos. Todos os meses meu pai me mandaria um dinheiro para pagamento do aluguel e demais despesas – eu não precisaria, por enquanto, me preocupar em fazer bicos ou ter um emprego de meio período, porque meu pai fazia questão de assegurar que eu não usasse a eventual fadiga como argumento para fazê-lo voltar atrás.






Tinha completado dezessete anos há poucos dias quando me instalei no dito apartamento, e a primeira noite que lá passei me deu a impressão de ser a pior noite da minha vida – embora eu não soubesse que era apenas o começo. Por uma fortuita combinação de proteção excessiva de minha tia, e de um certo desinteresse inato pelas coisas fora de minha vizinhança, eu nunca havia dormido fora de Grotão. Já havia visitado a cidade grande, e já havia dormido na casa de amigos e até de uma ex-namorada, mas nunca de fato dormido fora do estranho subúrbio. E naquelas noites em meu novo lar conheci uma terrível mescla de liberdade e pavor.


Custei a dormir. Ou na verdade, custei a me dispor a dormir – a arrumação das coisas e mobílias demorou mais que eu imaginava, e depois de tudo eu ia e vinha pela casa, a cada instante notando pequenos detalhes que me passaram despercebidos durante o dia (teias de aranhas ocultas em cantos escuros, farelo de pão acumulado debaixo de uma das janelas, pregos nas paredes que talvez antes segurassem quadros, uma pilha de papéis amarelados aparentemente largada pelo inquilino anterior no fundo de uma gaveta, um esquisito e inédito cadáver de uma barata branca debaixo da cama). Por volta das duas da manhã finalmente me coloquei na cama, mas acho que só consegui dormir lá pelas três horas, já que antes fiquei me virando e revirando sozinho pela cama de casal.


Ao contrário do que sempre acontecera até então nos meus períodos de sono em Grotão, consegui perceber o instante preciso em que adormeci – e só não cheguei a registrar a hora e minutos exatos, porque não deixo relógios nem celular ligados perto da cama. Meus olhos se fecharam e a escuridão resultante começou a tremular diante de mim.


Comecei a andar no meio daquela massa informe de trevas, e o mais estranho é que ela parecia curiosamente gélida ao toque, e não fugaz e imaterial como todo aglomerado de escuridão. Era uma coisa entre gás denso e líquido viscoso. Era possível não só sentir, mas ouvir bem alto, um ritmo de batidas regulares, que não vinham de nenhum ponto obscuro à distância, mas sim de mim mesmo – o ambiente tenebroso parecia responder a essas batidas, como um dedo constante e repetidamente perfurando a superfície de um lago, provocando ondas concêntricas.


A diferença estava em que as emanações centradas em mim afetavam não uma superfície bidimensional, mas uma medonha zona de no mínimo três dimensões – algo me fazia desconfiar que o tempo se distorcia mais além, e só aquele ritmo constante que saía de mim fazia a escuridão se estabilizar num espaço em que eu pudesse me mover direito. E apesar de poder me movimentar, não tinha pista alguma de onde estava indo. 


Um vago e crescente horror começou lentamente a me assaltar – era de se estranhar que aquela sensação aterrorizante houvesse demorado tanto tempo para se manifestar naquele espaço onírico, pois pelo menos três minutos percebidos haviam transcorrido desde que meus olhos haviam se fechado, mas era como se minhas reações emocionais estivesse mais lentas, embora inevitáveis – e percebi, o que fez o horror aumentar exponencialmente, que me deixar levar por aquele surto gerava consequências... físicas, ou pelo menos físicas de acordo com a perspectiva do sonho.


Meu medo se espalhava junto com as emanações que meu corpo emitia, provocando uma espécie de … não posso dizer terremoto,  já que não estava na terra... uma espécie de distúrbio espacial, um tremor psíquico que se expandia. E com o tremor minhas percepções iam junto, me fazendo conseguir sentir toda a escuridão que me envolvia. E a escuridão reagia. Ela se tornava mais densa, mais viscosa, mais enredante, e eu me sentia como se imerso num cipoal – tentáculos feitos de distorção e colapso se erguiam numa única onda que tentava rechaçar o meu próprio ser.


Conforme minha percepção se espalhava pelo abismo ao meu redor, eu enxergava, ouvia – e pior, sentia o gosto e o odor – dos tentáculos que se agitavam à minha volta. Numa revolta rápida, a viscosidade sombria que originalmente me cercava foi despedaçada pelos tentáculos de espaço distorcido (eram como feridas no cosmos, ferimentos, rachaduras e fendas que se moviam num turbilhão intenso, pulsando de modo tão bizarro que revelavam uma estranha e anômala consciência). A escuridão foi assim rasgada, e eu caí num túnel de paredes circulares e espelhadas, por uma longa eternidade, até ser despejado, gotejante como se coberto por um líquido amniótico, numa planície extensa que se espalhava até onde meus olhos conseguiam enxergar, onde atingia um horizonte malva.


Quando tempo andei por essa planície vazia e esbranquiçada, meus pés pisando um chão indefinido e brumoso que cedia devagar se eu parasse muito tempo num só lugar? Não quis descobrir o que me aconteceria, ou onde cairia, se parasse para descansar, e errei pela planície de Thangar-Baru por vários e vários milênios... até que um inesperado meteoro cruzou o céu malva, uma estrela cadente que incendiava aquela atmosfera mórbida, e num estrondo atingiu Thangar-Baru, estilhaçando aquele domínio onírico e me fazendo acordar com um salto e correr sem pensar até a janela semiaberta.


Depois de acalmar minha respiração, levei alguns minutos para perceber duas coisas extraordinárias: o relógio digital encimado num poste da rua indicava 01:01 – duas horas antes do horário em que adormeci – e, de onde havia tirado o nome Thangar-Baru?






O dia seguinte foi marcado por extremo cansaço. Eu conseguira adormecer normalmente, caindo num sono sem sonhos, depois daquilo, mas só por volta das cinco horas da manhã. Ou do que acho que seria as cinco da manhã. A princípio pensei que alguma coisa me fizera dormir mais de 24 horas seguidas, e ter acordado à uma hora significava ter dormido durante todo o dia – mas não era o caso. A data era a mesma (a madrugada de 23 de março), assim mostrava o relógio digital exposto lá fora. Estranhamente, meu celular estava desligado e assim não pude ter uma noção muito clara se ele havia misteriosamente se atrasado e na realidade eu me atrapalhara, e só havia achado que adormecera por volta das três da manhã. Ao ser religado, o celular havia perdido o registro de hora e data.


Parecia que o celular não estava sozinho em seu problema, porque o único outro aparelho eletrônico que estava ligado na casa também estava desligado – um microsystem que estava em stand-by na sala. Esse não quis funcionar durante três dias, e como não tive tempo de levá-lo num técnico, por três dias ficou mudo até que ao voltar para casa na noite do dia 26 o aparelho estava ligado, e não houve explicação nenhuma de como isso havia acontecido.


De qualquer forma, durante esses três dias, eu, que nunca sofri de pesadelos em toda minha vida, fui obrigado a uma alternância noturna de sonhos ruins e insônia. Aliás, não só noturna, já que qualquer cochilo que tentava durante o dia também invariavelmente terminava em frustração ou em viagens oníricas medonhas. O trajeto era mais ou menos o mesmo: a ondulação que se espalhava de mim mesmo, a batalha dos tentáculos contra a escuridão, o eventual fragor das trevas entrando em colapso e a queda quase eterna até ser expelido numa planície que eu tinha a certeza total e absoluta que se chamava – se chamava, não, ela se chama assim, já que ainda está lá – Thangar-Baru.


A perambulação naquele ermo branco e malva levava muito tempo dentro do sonho, até que algum incidente estranho a interrompia. Se da primeira vez houve a queda de um meteoro, da segunda vez encontrei um estranho poço que se erguia das brumas baixas e, ao observar suas profundezas, um jorro de chamas verdes se ergueu dele formando uma coluna que ia até o céu malva, e o clarão doentio me cegou de imediato, me obrigando a despertar. Da terceira vez, um enxame de pequenas coisas ia se aproximando bem lentamente, as minúsculas pernas articuladas e frenéticas quase invisíveis na bruma branca. Tentei me afastar delas, mas era inútil, acabei sendo alcançado e – é difícil descrever exatamente a sensação da coisa toda – devorado vivo por aquele enxame que não tinha fim, minha consciência se dispersando pelos corpos dos ínfimos e aberrantes seres. A horda de entidades híbridas entre crustáceo e aracnídeo, cada um deles com onze patas articuladas e assimétricas ao redor de um corpo revestido por uma quitina oleosa, marchou indiferente até a as bordas de Thangar-Baru e atravessou uma bizarra cortina intangível de cor malva … me fazendo acordar.


Pois bem, se todo meu costume de pesadelos se restringia a relatos alheios, devem imaginar então o sofrimento dessas três noites de pesadelos bem fora do comum e além de qualquer estranhamento presente nos sonhos em Grotão. Essas três noites foram acompanhadas de três dias em que articulei as coisas de modo a me preparar para a universidade. Em nenhum deles almocei dentro de casa. Era compreensível: a casa estava me dando medo, por causa dos pesadelos, e eu a evitava, a não ser para dormir. Como consequência, a maioria das minhas coisas ficou bagunçada, o que ainda piorava a sensação de alheamento que sentia dentro daquele lugar. E naqueles três dias, só uma coisa me aliviou o cansaço provocado pelas providências a tomar e pelos estranhos e inesperados pesadelos.


Essa coisa foi Anna.






Não vão achar ruim que chame uma mulher de “coisa.” Também não tem nada a ver com o conceito de mulher-objeto. Longe disso. Na verdade, como os leitores perceberão mais adiante, essa palavra faz total jus à moça que almoçava no mesmo restaurante que eu.


Eu passava mais tempo naquele restaurante que somente tomando café e almoçando: antes e depois das refeições, fazia anotações em meu caderno, pondo no papel minhas impressões a respeito dos misteriosos pesadelos que estavam me acometendo. Pela primeira vez, eu tinha o ânimo de fazer a crônica dos meus próprios sonhos, e não os da vizinhança. Às vezes fazia tentativas de desenhar a planície branca e nebulosa onde sempre vagava, mas quase sempre esses garranchos e esboços eram inconclusivos. Thangar-Baru parecia altamente elusiva, indescritível.


Também fazia esboços das coisas que experimentava nos sonhos, e delas extraía um sigilo correspondente. No segundo dia de almoço notei que uma moça, que no dia anterior estava sentada numa das mesas próximas, estava me observando com um mal disfarçado interesse. Era uma ruiva de cabelos longos e levemente ondulados, olhos castanho-esverdeados, não muito alta. Sua expressão de sobrancelhas erguidas me exercia um certo fascínio, era como se ela emanasse uma aura que atraísse e ao mesmo tempo deixasse o atraído naquela zona liminar, próximo mas sem a coragem de se aproximar.


E é claro, não tive a coragem de falar com ela. Nem teria exatamente o que falar. Provavelmente ela teria alguma razão, como eu tinha, de almoçar ali todos os dias (era tão prático e aconchegante), quem sabe mais tarde, com a convivência visual eu chegasse a conseguir conversar com ela; mas de qualquer forma eu me sentia exausto. Porém não foi preciso que um ritmo habitual se estabelecesse, porque no terceiro dia, quando eu desenhava as figuras daquela terrível e paciente horda de animais híbridos, Anna veio falar comigo.


“Está na EBANP?” Falou ela por trás de meu ombro esquerdo, referindo-se à divisão de artes e design de uma das mais conceituadas academias de Novo Portal. Interrompi o esboço e me virei para responder; de onde ela estava, conseguia enxergar vários outros desenhos e sigilos e símbolos e até mesmo a leve tentativa de um novo diagrama onírico.


Seu rosto era franco, mas o olhar era insidioso, com uma certa malícia. Mas não cheguei a hesitar. “Não, não, estou para entrar no curso de psicologia. Por quê? Acha que isso aqui tem algum valor?”


“Sem dúvida. Você parece não ter muita técnica, muita experiência, mas esses seus desenhos transmitem algo... melhor dizer que revelam alguma coisa. Não estou certa?”


Agora sim eu hesitei. Dava até a impressão de que ela sabia alguma coisa, mas isso era impossível. Ou pelo menos eu achei que era impossível – o tempo provou que eu estava mais do que errado. Mas estou me adiantando. Antes que eu pudesse responder qualquer coisa (nem lembro o que ia dizer), um tamborilar frenético de chuva sobre o toldo se fez ouvir, e um vento varreu a parte da frente do restaurante, derrubando vários dos meus papéis e nos obrigando a correr para catá-los com urgência.


Depois que tudo foi salvo (ou o que achei que era tudo; depois, em casa, fiquei com a impressão de ter sumido um dos esboços), e nos movemos para a parte coberta por telhado do estabelecimento, a ruiva sorriu e fez um comentário: “Parece que vamos passar um bom tempo aqui.  Qual o seu nome?”






Ela não podia estar mais certa, pois a tempestade que se seguiu durou mais de três horas e soube depois que houve inundações nas partes mais pobres da cidade. E daquelas horas de conversa surgiu o hábito de nos encontrarmos ali e palestrarmos durante mais tempo do que era necessário para almoçar. Descobri que era mesmo uma artista plástica, estudando na mesma faculdade que eu (a mesma Universidade Federal de Novo Portão que ela mencionara para quebrar o gelo), e era seu primeiro semestre ali, mas não o primeiro semestre no curso.


Parece que havia sido estudante de intercâmbio nos EUA, numa cidade de nome estranho em Massachusetts, chamada Arkham (o que tinha a ver com o fictício Asilo Arkham das histórias do Batman, não sei) e que estava atrasada, talvez por ter pego diversas matérias que à primeira vista nada tinham a ver com seu curso – de música, matemática e até de arqueologia. Dizia ser muito curiosa e dispersa: e na primeira vez em que fui em sua casa, cheguei a ver largada num canto a caixa de um remédio que sei que servia para um transtorno, distúrbio ou síndrome que mudou de nome várias vezes nos últimos anos. Num momento em que ela fora no banheiro, notei que a caixa estava cheia.


Enquanto isso a rotina de encontros com Anna se somou à rotina da faculdade, que muito me interessou, até o máximo que permitia meu cansaço perene, porque havia uma terceira rotina, a dos pesadelos. Toda noite um episódio estranho acontecia em Thangar-Baru. Alguns deles se repetiam, mas não de modo idêntico. E Anna tinha um interesse ardente nesses meus sonhos – pedia detalhes, apreciava os esboços (embora eu escondesse dela alguns dos mais extravagantes, ou que tivessem alguma semelhança com os diagramas que fazia na casa de meu pai). Um dia, não havia completado um mês de aulas, ela comentou que se eu só tinha esses sonhos no apartamento, então era porque o apartamento devia ser o culpado – e me chamou para dormir em sua casa.


Eu só havia estado nessa casa dela uma vez, antes. E ela nunca fora na minha própria casa. O convite parecia estranho, porque não estávamos namorando – tudo o que fazíamos era conversar, e fora o tom muitas vezes malicioso da voz de Anna, sua malícia se resumia à voz, aos olhos brilhantes e às vezes a maneira de caminhar, e nunca se expressava como sugestões verbais. Alguém poderia me dizer que isto já seria suficiente para determinar que ela estava emitindo sinais, mas é que ao mesmo tempo, durante aquele mês, é como se ela erguesse uma barreira invisível que desencorajasse qualquer aproximação maior. E de fato invisível e indefinível era essa barreira, porque ela estava longe de ser feia, desinteressante ou pouco inteligente. Pelo contrário, me dava a impressão de ser a mulher mais astuta que eu já conhecera. Até aí, a minha própria idade reduzida, de um calouro do lado de uma veterana de intercâmbios de aparentes 23 anos, podia ser a razão do fascínio misturado com aversão que sentia por ela.


Não vi como recusar o convite. Na primeira vez em que estivera na casa onde ela morava sozinha, eu não passara da sala; só havíamos passado lá para ela pegar uns livros e ir ao toalete. Fora quando eu notara a caixinha de remédios. Alguma coisa me fez não mencionar que reparara na caixa, nem mesmo que mexera nela e a achara com todos os comprimidos no lugar. Agora as coisas eram diferentes: eu ia dormir na casa de Anna.


O que chamava mais a atenção naquela sala não era a caixa de remédios que provavelmente não estaria mais lá, mas uma profusão de quadros de aparência bizarra. A maior parte deles era cubista ou medievalista, e não sei quais deles eram reproduções e quais eram genuínos. Um dos quadros chamava a atenção não por ser psicodélico ou arcaico, mas pelo realismo – se é que posso chamar de realismo uma representação de um ser tão grotesco, semi-humano com traços caninos. Naquele dia, quando perguntei quem era o autor daquilo – não deixava de ser uma obra de arte, embora das mais perturbadoras – ela disse que trouxera o quadro da sua temporada de intercâmbio, que o autor chamava-se Richard Pickman, que haviam pouquíssimas obras dele disponíveis, e que ela havia gasto quase todo o dinheiro sobressalente da viagem com essa e outras obras obscuras. Quem sabe depois ela me mostrasse as outras, acrescentou.


Quem sabe o meu convívio com Anna me distraísse de alguma forma dos meus sonhos, porque embora eles não houvessem cessado, eu me sentia menos exausto nos dias em que a encontrava. Levando isso em conta, por estranhas que fossem essas e outras obras, não se comparavam com os horrores de meus sonhos; então, se a opinião dela fosse correta, não me custaria nada passar a noite perto das tais obras de arte – que, segundo ela, não se restringiam a quadros, havia também esculturas, fotografias, gravações musicais e livros raros. Ela se definia como uma apreciadora do exótico; mas eu, depois de ver apenas os quadros da sala, enxergava pouca coisa de exótico e mais de macabro.


O que eu poderia definir talvez como no mínimo exótico era a escolha de lugar para morar. A casa, onde ela morava sozinha, havia sido anteriormente um prédio de apartamentos de três andares. Por alguma razão que ninguém comentava ou sabia explicar, o ex-dono do prédio mandara derrubar os dois andares superiores e toda a estrutura havia sido convertida numa casa de dois pisos. Quem prestasse atenção ao entrar na casa, como eu iria fazer, notava a simetria provocada pela antiga disposição de quatro apartamentos por andar. No meio deles havia um poço, para o qual davam quatro janelas no primeiro piso e apenas três no segundo – a oitava janela havia sido emparedada, sabe-se lá por qual motivo. Para quem morava num apartamento pequeno, de bizarras discrepâncias no pé-direito, meio torto e mal estruturado, a casa deveria me confortar, mas não foi o caso: aquela simetria agia sobre mim como se as paredes da casa servissem como os muros de uma prisão, uma sensação vagamente claustrofóbica que nunca havia sentido antes num ambiente tão espaçoso.






Foi essa sensação que me arrebatou naquele fim de tarde em que Anna abriu a porta para que eu entrasse, com um sorriso mais malicioso do que o normal. Eu teria demorado mais um pouco observando melhor a fachada da casa – ela não estaria mal colocada em Grotão, me causava uma certa nostalgia – mas sobreveio um temporal tão logo a dona da casa abriu a porta. Essas pancadas de chuva inesperadas estavam ficando cada vez mais comuns na cidade.


Deu para perceber, logo de cara, que alguns dos quadros haviam sido trocados. Havia também uma novidade – umas caixas de papelão abertas no chão perto da mesa de mogno, e em cima da tal mesa, lado a lado, duas esculturas que não pareciam muito normais. Uma delas era uma coisa deformada em baixo-relevo, feita de argila; provocava arrepios ao ser contemplada, e o ser monstruoso cercado por uma escrita desconhecida parecia um cefaloide alado, tendo como pano de fundo uma cidade ancestral. Não chegou a me alterar muito o humor, contudo, porque havia a segunda escultura: uma tartaruga de marfim, finamente esculpida, de olhos quase vivos e casco detalhado. Peguei a tartaruguinha na mão e era tão linda e pitoresca, que o baixo-relevo perturbador perdia qualquer importância.


“Não se anime muito,” Anna interrompeu o meu devaneio com a escultura, “não é o original. Ambas cópias muito bem-feitas, senão você não estaria aí com essa cara.  Quem as fez era um artista inspirado... tão inspirado quanto você, eu acho.”


“Continua achando mesmo que sou um artista, não é?” Pus a tartaruga de volta à mesa e dei uma boa olhada ao redor: alguém havia feito uma bela faxina, os móveis estavam brilhando e não havia uma só grama de poeira no chão. Mesmo assim, o jeito antisséptico do ambiente me incomodava. Se as paredes me lembravam, de leve, muros de prisão, o piso e próprio ar que me cercava davam a impressão de estar num hospital – dava quase para cheirar o éter. Devia ser algum produto de limpeza que eu não conhecia.


“Pelo menos eu acho que vocês bebem das mesmas fontes.” O sorriso de Anna dessa vez foi até predatório, mas ela logo colocou-se numa postura relaxada e até sedutora, me fazendo cair a guarda de novo. “Foi um rapaz que conheci numa enevoada colônia de artistas durante o ano de intercâmbio. Para o seu conselho, dizia que artista não escolhe ser artista, só aceita o fardo. Quando fui embora, ele ficou me devendo e pagou com estas esculturas. Não foi a única coisa que trouxe de lá, mas depois lhe mostro. Minha casa não é um museu, pode ficar mais calmo, não precisa ficar assim, com essa cara. Sente aí que eu vou buscar alguma coisa para bebermos.”


Enquanto ela sumia nos fundões da casa (Por que não havia um bar na sala?  Do jeito que devia ter dinheiro, nada custava instalar um móvel assim... ou será que tinha uma adega em algum lugar?), pus a mochila com minhas coisas de lado, e tentei relaxar num dos sofás, mas não consegui. O arranjo das pinturas na parede, como mencionei, havia mudado; e a nova disposição parecia diabolicamente hipnótica, simetricamente sugestiva. Acabei levantando, e examinei boa parte dos quadros. Havia alguma coisa que me chamava a atenção naquilo tudo, e como era de meu costume, peguei o meu caderno de anotações na mochila, e copiei a disposição dos quadros nas três paredes em que eles estavam expostos.


Parecia estar demorando demais, então eu cheguei a referenciar quais quadros estavam em cada posição... e como dos onze quadros exibidos, apenas dois tivessem o nome na parte inferior da moldura, desenhei sigilos abstratos e sintéticos para representar os outros nove; e acabou me dando na cabeça, depois que vi que ela estava demorando mesmo, de elaborar sigilos até mesmo para aqueles quadros que tinham nome.


Era como se eu estivesse de volta a Grotão, só que em vez de relatos oníricos, eram imagens. Valeria a pena descrever esses quadros, ou citar seus nomes? Mas se estou dizendo que aquela simetria macabra me chamava mais a atenção que as próprias imagens?


A única parede sem quadros estava tomada por uma enorme estante com alguns aparelhos eletrônicos, televisão e som, pela porta para o interior da casa e pelo sofá onde eu deveria estar sentado. Daquele sofá você teria uma visão abrangente dos quadros... e também de outras coisas na sala que pareciam fazer parte da disposição simétrica em questão, a saber, dois candelabros antigos pendendo do teto, a porta da rua, dois tapetes de cor verde-musgo no chão e... o próprio sofá onde eu acabei finalmente me sentando.


Não pude respirar nem três segundos naquele sofá, porque de dentro da casa veio o estardalhaço de uma garrafa quebrando.






Saí correndo, quase em pânico (todo o processo de observação do diagrama havia me deixado sensível naquele momento), na direção do som estilhaçante. Passei por um corredor com três portas e uma delas, a segunda, estava aberta. Era a cozinha. Ou na verdade uma das cozinhas da casa. Corri até ela, e o pânico deu lugar ao choque.


Os fragmentos de vidro se espalhavam por todo o chão ladrilhado. Os maiores cacos concentravam-se ao redor e sobre uma enorme poça de líquido rubro. Levemente curvada na direção da poça, Anna segurava o pulso ferido, escorrendo um filete de sangue – e naquele instante tive a mórbida impressão de que todo aquele sangue derramado no chão viera daquele filete que pingava sobre a poça.


Ela ergueu os olhos e esboçou um sorriso sem graça, ou quase. Parecia estar se divertindo e ao mesmo tempo resignada. E, junto com o sorriso, veio o cheiro inebriante do vinho derramado no chão.


Era vinho tinto.


Como é que não tinha sentido aquele cheiro tão forte de vinho, ao chegar na soleira da porta, eu não sei, mas posso atribuir ao meu estado de nervos um tanto alterado, pressionado pelo cansaço e pela antecipação.


Rapidamente eu a ajudei a se recompor e ela pediu ajuda para lavar o ferimento. Segundo ela, ao manusear a garrafa quebrada, a derrubou e um dos estilhaços, ao pular do chão, atingiu o seu pulso, quase na artéria. Por isso estava rindo, ela disse – era um riso nervoso, porque poderia ter sido muito pior.


Lavamos o seu pulso num lavabo no fim do corredor, bastante perfumado, mas que não conseguia disfarçar de todo aquele odor de produto químico que havia sentido ao entrar na casa. Esse cheiro era indefinível: se você conseguir imaginar uma mistura de éter e água sanitária, terá conseguido chegar perto do onipresente cheiro daquela noite na casa de Anna.


Depois de ter enfaixado com uma gaze o seu pulso, Anna voltou comigo à sala. Quando passamos pela porta da cozinha, vi aquela mancha vermelha no chão – o vinho derramado, que formava um padrão esquisito, não muito normal para uma poça de líquido derramado. Parecia mesmo que a poça havia se deslocado um pouco durante aqueles minutos em que estivemos no lavabo. “Não vamos limpar esse chão?” perguntei à dona da casa, antes de tomar qualquer iniciativa.


“Não. Estou cansada depois disso, deixa aí, usamos a outra cozinha se for preciso, perdi até a vontade de beber. Vamos para a sala.” Com um suspiro de alívio, ela pôs um braço em volta dos meus ombros, seu perfume cítrico enfim vencendo o cheiro esquisito da casa, e discretamente me guiou até o sofá da sala onde...


…Onde eu havia deixado o diagrama recém-desenhado.






O olhar de Anna desceu até o papel mal dobrado, parou por cerca de dez segundos, analisando com um certo cuidado, seguindo com um longo e profundo suspiro. Era como se ela estivesse só checando e confirmando. Permaneci calado, e minha anfitriã voltou aqueles olhos que antes eram quase verdes, mas que ali, sob a estranha iluminação de sua casa incomum, me davam quase a certeza de serem amarelados. Ela estendeu a mão que antes envolvia meus ombros e segurou meu rosto, dizendo:


“Por quê você faz isso? Que está procurando com isso?”


A palma de sua mão estava levemente suada, e do lado esquerdo de sua testa eu podia ver uma pequena gota de suor, descendo vagarosamente. Até três minutos antes, mesmo com a agitação do acidente com a garrafa, ela não parecia estar suando assim – pelo contrário, sua pele sempre mostrou uma suavidade e impecabilidade fascinantes, que me davam a vontade de tocá-la. Pois bem, aquele toque era completamente diferente do que eu imaginava que seria. Úmido. Palpitante. Forçoso, invasivo.


Tentei controlar meu próprio nervosismo – nunca mulher alguma me deixara tão agitado, tão perturbado; e se não fui exemplo de conquistador até então, namoros curtos e pequenos casos não me faltaram na juventude em Grotão.

“Procurando? Que quer dizer?” Tentei erguer minha mão para segurar a cintura dela, de certa forma reagir àquela intimidade nova, mas não consegui. Era como se ela segurasse minhas rédeas, enquanto provocava com suas esporas maldosas – como aquela mão morna e suada, a postura firme e altiva de seu corpo, e seu olhar ao mesmo tempo sonolento e transfixo.


A outra mão de Anna segurou o outro lado do meu rosto, ela se aproximou um ou dois centímetros, e exalou estas palavras: “O mapa. Você desenhou um mapa. Quem usa um mapa, quer encontrar algo, procura alguma coisa, tenta se localizar, achar uma razão para a existência, quer definir algo, trazer esse algo à realidade, não estar mais perdido – você estava perdido, meu querido?”


Não consegui responder, mas dessa vez consegui pôr as mãos em volta da cintura dela. Era como se aquilo fosse uma confrontação: e confesso que estava perdendo. Os olhos da garota pareciam cada vez mais amarelados, quase dourados, sua boca carnuda abria e fechava durante suas falas, de um jeito que parecia estar mastigando algo invisível. Os dentes eram tão alvos, notei; sua cintura, tão gostosa de segurar, era como explorar um território ao mesmo tempo proibido e extremamente familiar... o que era aquela sensação?


Ela continuou, e empurrou os quadris para a frente, “Quer se perder de novo, meu querido? Quer me penetrar de novo?” De novo, como assim? Eu podia não saber direito do que ela estava falando, mas a situação toda me fazia não querer maiores explicações, pelo menos não explicações verbais.


A boca de Anna era levemente salgada, um alvoroço tomou conta de mim enquanto a beijava. Era uma fome sendo saciada, e uma sensação martelante de estar caindo num precipício sem volta.


Rapidamente estávamos sem roupa sobre o chão duro entre os dois tapetes. O pensamento paradoxal de familiaridade e proibição aumentava a cada carícia que trocávamos, a cada movimento de minha língua sobre os seios de Anna, a cada movimento de seus quadris sobre mim, quando subimos no sofá, fazendo sexo sobre o próprio diagrama que havia provocado aquele diálogo absurdo. Enquanto ela se contorcia sobre meu tronco, seu pescoço se esticava para trás num gesto de prazer, e a língua saía da boca, serpenteando malva... malva, pouco a pouco sua pele branca se tornou mais e mais da cor das brumas daquela planície que todas as noites eu visitava; num movimento violento ela se jogou no chão comigo por cima, atordoado, ainda a penetrando, e a realidade ao meu redor se desfez, eu caía de novo naqueles túneis de paredes espelhadas, só que dessa vez sentia estar absurdamente caindo para cima; a explosão de tentáculos apareceu ao redor de mim, e voltou ao meu corpo, sendo absorvida num espasmo involuntário.


Balancei a cabeça, horrorizado e excitado ao mesmo tempo, e me vi semierguido, nu, trêmulo, numa cama de um quarto desconhecido.






O rico aposento não estava em condições tão boas como sua opulência poderia sugerir. A cama onde acordei estava totalmente desforrada, lençóis jogados pelo chão; alguns deles até mesmo rasgados. Prateleiras e prateleiras faziam guisa de estante, espalhadas pelas paredes de pintura um tanto descascada. Os pregos de algumas das prateleiras estavam bastante corroídos, enferrujados. Além disso, em frente à cama havia um tipo de móvel de madeira negra e ferro, com cinco gavetões desproporcionais, e três porta-incensos soltando fortes odores no quarto. Junto ao incenso queimando, vários livros abertos e papéis amontoados. O que mais chamava a atenção naquele lugar estranho mas um tanto aconchegante (como se já estivesse dormido várias vezes ali), era a comprida rachadura vertical correndo pela parede logo atrás do tal móvel. Tanta atenção que você quase esquecia que o quarto não tinha porta!


Praticamente entrei em pânico. Olhei para meu corpo nu e sobreveio uma pavorosa sensação de deja vù; uma mancha rubra se espalhava pela cama e pelos meus quadris, com padrões quase idênticos ao da mancha de vinho no chão da cozinha, mais cedo... exceto que aquele líquido me encharcando não era vinho, e sim, sangue. 


Levantei-me desesperado, para caçar uma saída daquele inferno. Só aí notei que havia uma porta no quarto: mas que louco colocaria a cabeceira de uma cama de casal virada para uma porta, obrigando a quem quer que fosse se esgueirar e espremer para sair ou entrar do quarto? Me acalmei um tanto, e prestes a abrir aquela porta para procurar minhas roupas e tomar um banho, onde quer que fosse, meus olhos instintivamente se voltaram ao esquisito móvel atrás de mim: a madeira dele havia estalado, e naquele silêncio e situação qualquer ruído soava como se flagelos vibrando no ar.


Para aumentar minha surpresa, vários dos papéis dispostos sobre esse móvel eram alguns de meus diagramas oníricos, daqueles que eu pendurava nas paredes da casa de meu pai. Entre esses diagramas achavam-se vários livros abertos – chequei os títulos numa pressa curiosa e inadequada: Azathoth e Outros Horrores, poemas de um certo Edward Derby; Anotações Matemáticas Compiladas de Walter Gilmor; O Rei Vestido de Amarelo, uma Reconstituição Histórica; um volume sem título nem capa, com capítulos de nome Teratosofia, Placas Tectônicas da Terra dos Sonhos, Cavalgando a Esfinge Negra e Simetria Macabra; Manuscritos Pnakóticos (este o mais volumoso e desordenado); um livro de psicologia, intitulado Percepções Anômalas do Tempo, do dr. Wingate Peaslee (já ouvira menção deste autor, por um dos meus professores); uma espécie de roteiro de cinema datilografado, de nome O Legado de Eibon; e até um libreto de ópera de um tal Bordighera, cheio de anotações manuscritas nas margens.


Fiquei tão atordoado checando aqueles livros e diagramas, que não ouvi nem percebi a porta do quarto se abrindo... até que eu me voltasse para trás, a visse a cama manchada entre a porta aberta e o corpo desnudo e curvilíneo de Anna, uma mão segurando um cacho ruivo, a outra uma toalha vermelha, quase da mesma cor do sangue que manchava também os quadris e o púbis cuidadosamente depilado da garota...


“Olá, meu querido.  Dormiu bem?” Ela foi chegando mais perto, como se tudo estivesse exatamente como ela desejava, e tudo muito bem, obrigada. Estendeu a toalha vermelha para mim. “Quer tomar um banho? É melhor mesmo uma boa ducha... não acha? Sabe, você não foi o único que caiu no sono logo depois da transa, e bem rápido aliás, que eu não fiquei chateada.” Percebendo (ou fingindo só então perceber) que eu estava meio paralisado, me tomou pelo braço: “Vamos então?”


Quem sabe a água caindo sobre meu corpo acabasse me despertando de verdade, pensei, e eu acabasse descobrindo que era tudo um sonho erótico mesclado a um pesadelo. Ou então, no mínimo, eu acordaria direito, e poderia fazer as perguntas que me afligiam. Por enquanto, por mais perturbadora que fosse a situação e mesmo a presença daquela minha companheira, algo me dizia para aproveitá-la antes que tudo sumisse, ou então que tudo piorasse, tornando-se ainda mais enigmático e estarrecedor. Ela me conduziu até a porta – será que essa porta estava trancada, enquanto eu dormia? – e entramos num toalete, que tinha uma outra porta, esta entreaberta, dando para um dos corredores da exótica casa de Anna.


Uma banheira embutida na parede e no chão, com três estranhas torneiras de um metal similar ao cobre, mas muito menos fosco e mais atraente aos olhos, derramando suavemente água, enchendo a banheira grande, de cor marmórea. Como não ouvi antes o ruído da água caindo, não sei. Cada torneira parecia fornecer água numa temperatura diferente, e todas as três estavam bem abertas: não era apenas um pingar.


Entramos na água da banheira cheia até mais da metade e meu estado de ânimo não se aclarou muito. Parece que ela se aproveitou disso para desestimular quaisquer perguntas, me excitando novamente com seus toques e mais uma vez fizéssemos sexo, embora desta vez nenhuma alucinação me arrebatasse. Embora com um toque maior de violência – nos arranhamos e nos mordemos bastante, e acabei possuindo-a de quatro, provocando gritos que devem ter se espalhado pelos estranhos corredores e cômodos da casa – quando tudo terminou, eu estava mais calmo, e mais propenso a crer que aquela experiência inusitada mais cedo não passara realmente de uma alucinação, causada com toda certeza pelo meu cansaço acumulado naquele mês de pesadelos, e até pela minha falta de sexo durante esse mesmo período.


Mas nada disso explicava o sangue que sujava a cama, sangue em nossos corpos que se misturou à água e a um pouco de sangue que derramamos durante a segunda sessão de sexo, e que o ralo da banheira sorveu célere e faminto. Quando fiz notar isso a Anna, ela respondeu:


“Não sei explicar isso direito, Virgílio. É como se você tivesse me tornado virgem de novo, meu querido... que nem na música: tocada pela primeira vez, sabe?”


Me deu a impressão de que ela estava escondendo alguma coisa: mas a impressão acabou não incomodando muito, porque Anna sempre parecia estar escondendo alguma coisa, o que me fez admitir que isso fosse apenas parte do comportamento misterioso dela, do charme que ela usava para alternativamente (ou simultaneamente) seduzir e afastar as pessoas ao seu redor. E também de convencê-las daquilo que não parecia muito certo, ou que parecia fora do lugar: quando perguntei por quê meus diagramas estavam espalhados por cima daquele móvel no quarto, e como ela os havia conseguido, ela disse que fui eu mesmo que os trouxe na mochila, e que enquanto eu dormia ao lado dela na cama, ela vasculhou a mochila procurando camisinhas, achando os diagramas; já que havíamos transado sem proteção nenhuma e ela não tinha, de qualquer forma, nada guardado em casa para isso, pois não havia contado com o ardor que havia nos consumido, não havia sido nada planejado.


É verdade que haviam algumas camisinhas na mochila; não sou tão idiota assim. Mas fui idiota o suficiente para aceitar essa explicação, porque não me lembrava absolutamente de ter guardado e levado diagramas que deviam estar expostos lá nas paredes um tanto mofadas da casa de meu pai. Porém, alguma coisa lânguida e firme na voz de Anna me fez não contrariá-la e achar que eu havia, no fim das contas, me atrapalhado, ou tido algum lapso.






Eu disse que passei apenas seis meses morando no apartamento da cidade, e que isso me rendeu uma rotina insuportável de pesadelos, não foi? Pois essa não foi a verdade completa. Os pesadelos frequentes, desde que dormi pela segunda vez naquela noite, ao lado de Anna, desapareceram de maneira inexplicável. Quando voltei para o apartamento no dia seguinte, a noite transcorreu tranquila, embora com uma leve dose de apreensão.


Como qualquer outra pessoa que vive na cidade. Ou quase poderia dizer: como sempre foram as noites dormidas em Grotão.

E por mencionar Grotão, não voltei lá até o final do semestre. Apesar de alguns pedidos estranhos da parte de meu pai, de ir passar o fim de semana com ele (durante o primeiro mês, ele fazia questão de que eu permanecesse na cidade, para não insistir em voltar a Grotão), o meu namoro com Anna me tomava quase todo o tempo desperto fora das aulas. Ou quase isso, já que faltei várias aulas junto com ela, rodando a cidade em sua companhia, ou nos encontrando na casa dela (e nunca no meu apartamento: ela sempre se recusava), desfrutando de várias horas de sexo. Embora não fosse uma mulher ciumenta, Anna com certeza revelou-se possessiva, tomando quase todos os instantes da minha vida, inclusive quando não estava fisicamente por perto.


Além de possessiva, também continuou mantendo sua aura de mistério: o ápice disso foi quando, com cerca de três meses e pouco de namoro, ou seja, depois de mais ou menos quatro meses e meio de minha estadia na cidade, ela passou vários dias sumida, sem telefonar nem abrir a porta da casa (é possível que estivesse lá dentro o tempo todo, nunca me passou uma cópia da chave). Antes que eu chegasse a notificar a polícia, ela reapareceu na universidade, pedindo desculpas pelo sumiço, mas é que havia tido de lidar com um problema de família, e nisso ficou. Não adiantou pedir maiores explicações. Desde esse dia, nossa relação se afrouxou um pouco, mas não o suficiente para diminuir o domínio dela sobre mim – não que ela continuasse me procurando com a mesma insistência, mas eu não deixava de pensar nela e nossos contatos começaram a ser, em sua maioria, iniciados por mim.


Um mês se passou; meu pai aumentou a insistência de seus convites para que eu voltasse a Grotão nos fins de semana, mas as últimas provas se aproximavam, então usei esse fato de desculpa para não ficar sem ver Anna. Essa foi uma das minhas fontes de arrependimento, que mencionei no começo do relato: se tivesse aceito um desses convites, quem sabe meu pai não estivesse agora internado num asilo, num estado de senilidade avançada que antes não demonstrava.


E então, durante a última semana de provas, os convites tornaram-se menos uma exigência do que uma súplica. Meu pai implorava, quase chorando ao telefone, que eu largasse tudo e viesse vê-lo – ele não tinha nem condições de sair da própria casa naquele momento para me encontrar, e eu não consegui entender muito bem a razão, mas sua voz era aflita e ele estava muito confuso e desesperado.






Como uma espécie de vingancinha por aquele sumiço de Anna, não dei a ela aviso nem explicação nenhuma e fui direto, após uma prova numa quarta-feira, da universidade para o subúrbio de Grotão. Cheguei bem tarde, quase onze horas da noite; o céu noturno exibia um brilho cinza-escarlate, e poucas estrelas podiam ser vistas em meio à cobertura de ar sujo. Era incrível, mas parecia que Grotão exibia um estado ainda mais deteriorado: as ruas estavam mais silenciosas do que mesmo aquela hora sombria poderia indicar, o descuido dos jardins era ainda mais nítido, e trepadeiras, líquens e manchas pútridas de poluição lotavam os muros da casa de meu pai. Este ardia em febre, nem sequer pôde me abrir a porta, que lidei com minha própria chave.


Uma terrível e bizarra melancolia me assaltou ao perceber também o desleixo e caos dentro de minha própria casa. Minha tia solteirona parecia sequer existir: apesar de não estar de cama como meu pai, deixava a casa ao deus-dará, o chão quase pegajoso de poeira e umidade, objetos e roupas largados nesse piso imundo. Não tive qualquer ânimo de reclamar, todavia. Não só a febre delirante de meu pai merecia atenção imediata, como notei que a tia tinha retraído-se a uma misantropia ainda maior, nem sequer mais falava, e andava pelos corredores da casa como autômato insensível. Por quê meu pai não mencionara antes esse declínio horrendo, ele nunca me respondeu. Parece que a tendência dele a eufemismos acabara lhe custando a saúde e talvez, a sanidade de sua irmã.


A cada noite que passo andando por esses corredores da casa que um dia foi de meu pai, sozinho, lembrando daquela ocasião fatídica em que voltei a dormir nela, um temor e uma sensação de amargura me assaltam. Mas eu sei que é melhor para ambos estarem longe de Grotão e da praga que ali se instaurou, à minha revelia e por minha culpa.


Depois das providências tomadas com mais urgência, meu pai revelou em sussurros que estava com medo de dormir. Suas olheiras estavam muito piores do que há seis meses atrás; uma palidez lhe tomava o rosto quando ele falava dos pesadelos horríveis que tinha. E em seu relato, o medo foi crescendo em meu próprio peito, porquanto eu reconhecia detalhes muito familiares, mas que não tinha contato há meses.


O pior de tudo é que meu pai precisava de repouso; não adiantava senão confrontá-lo com o que ele mais temia, que era dormir. Pus uma música relaxante em seu quarto, e tentei confortá-lo com uma conversa sem muito propósito, para que ele logo entrasse no sono. Durante essa conversa – praticamente uma canção de ninar – eu via minha tia passar a cada cinco minutos ou isso, andando pelo corredor como se estivesse caçando insetos nas paredes.


Apesar de perturbado e temeroso, meu pai acabou se rendendo ao sono. Havia um colchonete no quarto, e quase considerei seriamente estendê-lo e dormir ali mesmo, do lado da cama de solteiro de meu pai. Mas, ignorando alguma intuição estranha que me vinha, preferi dormir no quarto ao lado, onde havia a cama de casal que meu pai usara com minha mãe enquanto ela esteva viva.


Pedi à tia que fosse dormir, em vez de vagar pela casa, e ela resmungou de volta alguma coisa que não compreendi; deixei de insistir e fui eu mesmo me recolher. Tirei a camisa e dormi com a mesma calça que andei na rua.






Eu tentei abafar aquele medo debaixo do tapete do subconsciente, mas ele voltou para me assombrar... Tão logo adormeci, me vi como há meses, vagando pelas trevas palpáveis, o fervilhar dos tentáculos anômalos lutando contra essas trevas, a inenarrável queda por um túnel penumbroso e espelhado. Só que ao contrário de me ver sozinho na grande planície branca e enevoada de Thangar-Baru, coberto pelo céu esquisitamente malva, para suportar algum novo ordálio noturno, vi uma multidão de vultos a caminhar perdida na infinitude da planície. As figuras cambaleavam em meio à bruma que se erguia ansiosa, como se manifestando uma vontade inominável.


Comecei a também andar entre esses vultos, buscando avidamente uma explicação para aquilo – e entre eles encontrei faces conhecidas, vizinhos que não via há meses, colegas de infância, o carteiro do bairro, os policiais preguiçosos que faziam a ronda, o padeiro envelhecido, todos demonstrando uma mistura incompreensível de apatia e pânico, que poucas palavras tenho para descrever.


Além das feições emaciadas e abatidas, as figuras na névoa de Thangar-Baru também exibiam marcas, cicatrizes, lacerações, membros mutilados, órgãos expostos... quanto mais eu andava em meio a eles, que mal respondiam a meu olhar interrogativo, como se não estivesse ali (eles mal reagiam uns aos outros!), mais o estado físico e mental dos vultos parecia piorar.


Foi quando o pânico me assaltou, pois eu não havia até então encontrado meu pai, nem minha tia. Saí em nervosa e desabalada busca, para só notar outro detalhe apavorante… várias das cicatrizes e marcas nos corpos de meus vizinhos oníricos tinham a forma dos sigilos que eu desenhara nos diagramas de seus sonhos!


Ao perceber isto, soltei um grito insano. A multidão ao meu redor estacou, como se tomada de um frêmito de temor, e vários procederam a fugir desordenadamente… era como se meu berro houvesse de atrair uma fera, ou quem sabe as hordas de monstrengos que habitavam a planície. Mas era tudo um sonho! Tudo um sonho! Uma insensatez me tomou e fui sendo deixado pelos figuras que corriam em desespero, até que uma forma pouco reconhecível, mas pressagiosa, começou a descer, vinda dos céus, como se nadasse em meio a um oceano de cor malva… ao chegar mais perto, notei que bizarras patas quitinosas se mexiam num frenesi inquieto, quatro de cada lado; que a coisa, hedionda, era como um imenso tubarão, com as patas assemelhadas às de um escorpião, e que como de um aracnídeo assim também a cauda terminava num maldoso ferrão. A coisa pousou, vinda do líquido nojento que era o céu malva, e pude perceber que sua cor era quase que a mesma do céu, apenas um pouco mais escura, e daí a dificuldade de distinguir antes o que era aquilo que se contorcia, nadando no espaço acima.


O monstro não teve um instante sequer de imobilidade, enquanto a minha própria paralisia me prendia e enraizava os pés em meio a névoa cruel que baixava, como se satisfeita em revelar cada contorno macabro daquele ser faminto. Porque faminto ele estava: abocanhou dois dos vultos em fuga, sacudindo a cabeça descomunal e mutilando as figuras num banho de sangue, logo absorvido pela bruma inquieta.


As projeções oníricas atacadas afastaram-se, misturando gemidos e lamentos a um uivo incompreensível, como se numa língua ancestral entoado súplicas, e nelas eu reconhecia a voz de meu pai e minha tia… mas nada pude fazer. A criatura virou-se para mim, e eu, preso de medo, sentia como se meu fim já houvesse chegado. Seria devorado por aquela abominação malva que agora predava na planície de Thangar-Baru.


O monstro chegou a poucos metros de mim, mas seu tamanho, maior que uma locomotiva, me dava a ilusão de estar a poucos centímetros de meu rosto – e de qualquer forma, era um sonho, não? Só podia ser um sonho! De repente, uma serenidade mórbida caiu sobre mim, pois instintivamente soube quem era aquele devorador, aquele torturador medonho, feito de sangue e substância malva dos sonhos: ele abriu as mandíbulas já esperadas, arregalando os olhos tomados pelas pupilas de um púrpura de tom escuríssimo, exibindo as fileiras de dentes que se contorciam com o formato e jeito de ferrões venenosos… e dentro de sua goela esfomeada, pulsava aquela língua inchada, hedionda e anormal, que tinha a forma de um rosto humano esculpido na carne viva!


O rugido gutural da coisa agrediu-me de tal forma que fui expulso daquele domínio de  pesadelos, acordando encharcado de suor, na cama do quarto vizinho ao de meu pai.






Saí correndo da casa, horrorizado, depois de checar a segurança de ambos, pai e tia. Acordei um vizinho que me conhecia desde criança, e exigi aos gritos que ele me emprestasse o carro, era uma emergência, eu precisava ir à cidade naquele mesmo instante. Assustado, o homem acabou concordando, e disparei pelas ruas de Grotão em alta velocidade, na direção da estranha casa de Anna.


Fora de mim, tomado de raiva, senti a cólera sumir num instante, ao cruzar a esquina da rua onde aquela casa anormal se ocultava. Um incêndio consumia a casa de dois andares, e ninguém parecia ter chamado os bombeiros, ou pelo menos eles não haviam chegado. Desesperado, liguei para a sede dos bombeiros pelo celular; e depois de muita tentativa (a recepção estava péssima, e a linha caía toda hora) dei o endereço para que viessem socorrer a casa que começava a parecer uma ruína antiga e devastada, mostrando finalmente sua verdadeira aparência.


Cheguei a imaginar se um ato heroico da minha parte, ali naquele momento fatídico, poderia ter salvado Anna, quando um dos bombeiros veio me dizer que o cadáver dela fora encontrado em meio aos destroços – mas o remorso não me doeu muito tempo, porque depois de alguma reserva das autoridades, soube que o incêndio começara do quarto dela, e que fora uma daquelas quase míticas ocorrências de autocombustão espontânea… um polêmico vídeo chegou a vazar, com minha falecida namorada executando estranhos cânticos rituais diante de uma câmera digital conectada à internet, e culminando nas chamas tomando inexplicavelmente seu corpo no ápice do tal rito.


Ao que parece, pelo menos um dos bujões de gás das cozinhas da casa havia sido deixado aberto, e o gás disperso pela casa causou o estrago principal, ao explodir. Uma lenda urbana até se formou sobre o caso, e uma de suas variações mais inócuas conta que o fogo que engolfou a ritualista era verde e tremulava de modo quase caprichoso. A maioria das pessoa que chega a assistir ao vídeo não vê nada disso, porém. Quanto a mim, pelo contrário, sentia que um véu, colocado antes por Anna, fora tirado dos meus olhos. Não demoraria muito para eu descobrir toda a verdade que pressentia.






Hoje, um ano depois desses acontecimentos, me acostumei a uma rotina ingrata, levado por uma senso de dever singular, de responsabilidade pessoal – esses nomes enfeitados que damos à sensação de culpa. Reuni como pude os restos sobreviventes da biblioteca profana de Anna, suas obras de arte enigmáticas, seus tomos secretos de rituais. Houve uma certa dificuldade nesse sentido, mas como ela não tinha parentes vivos reconhecidos, e o advogado da minha própria família era quase tão astuto quanto Anna… Meu pai, sem qualquer necessidade de uma explicação da minha parte, foi para o asilo curtir os últimos anos de sua velhice, numa paz maior do que a que poderia ter em Grotão; e minha tia teve de ser encerrada numa casa de recuperação para doentes mentais.


Sozinho naquela casa, agora cercada de uma série de proteções e alarmes, depois de espreitar pelas ruas do subúrbio, à noite, me refugio no quarto trancado, cujas paredes estão lotadas pelos diagramas oníricos que desenhei… pelos sigilos de invasão de sonhos, elaborados nos papéis do cofre de Anna… pelas notas discretas de jornal que mostram o aumento da criminalidade, dos casos de surto mental, de sonambulismo e de acidentes inexplicáveis em Grotão… e pelos registros chamuscados que não chegam a provar legalmente, mas para os que sabem deduzir, revelam a realização de um aborto durante aquele curto período em que Anna esteve desaparecida… de um embrião de três meses e treze dias… e naquele cubículo isolado, após acender os necessários incensos místicos de cheiro antisséptico, desenho meu círculo de proteção para em seu centro adormecer, todas as noites…


…E invadir Thangar-Baru, a Planície Eterna nas Terras do Sonho, onde multidões de almas adormecidas correm perigo, para subir no farol que construí a duras penas, nas bordas daquele reino onírico, feito a partir da essência de conhecimento e sigilos arcanos, e de suas alturas localizar nas trevas de cor malva a sombra daquela coisa que caço e enfrento e mato, empunhando a faca de aço meteórico forjado no poço do fogo verde: a coisa monstruosa que ressuscita noite após noite, e que escancara a goela antes de morrer, mostrando na deformada língua aquele rosto quase idêntico ao meu, a não ser pelos cabelos ruivos e pelos olhos verde-amarelados, em êxtase imortal, iguais aos de minha falecida namorada, Anna, a feiticeira.




Esta noveleta foi publicada originalmente em http://insanemission.blogspot.com/2010/09/o-farol-na-escuridao.html
E foi revisada e reescrita em alguns pontos em junho de 2012.

Este trabalho foi licenciado com a Licença Creative Commons Atribuição - NãoComercial - SemDerivados 3.0 Não Adaptada. Para ver uma cópia desta licença, visite http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/3.0/ ou envie um pedido por carta para Creative Commons, 444 Castro Street, Suite 900, Mountain View, California, 94041, USA.

Cópia em pdf: AQUI

Nenhum comentário:

Postar um comentário